Eventos climáticos extremos trazem à tona afrouxamento da legislação no estado e relação direta com o impacto social
Com milhares de vítimas das enchentes extremas nesse mês e impactos socioeconômicos ainda inestimáveis, o Rio Grande do Sul é o único estado da região Sul sem regulamentação do Programa de Regularização Ambiental (PRA), etapa obrigatória para implementação do Código Florestal, lei de proteção da vegetação nativa do país.
A informação está disponível no Portal de Monitoramento do Código Florestal, iniciativa do Observatório do Código Florestal liderada pela BVRio, e é uma das evidências da negligência com a legislação ambiental do estado.
O Termômetro do Código Florestal mostra ainda que o estado possui mais de 387 mil hectares de vegetação nativa ainda a ser recuperada, área equivalente à quase oito vezes o município de Porto Alegre, capital do estado. Destes, 256 mil são de reserva legal (RL) e 129 mil são de áreas de preservação permanente (APPs).
Tanto a RL quanto as APPs requerem proteção pois exercem um importante papel no funcionamento e equilíbrio do meio ambiente. As APPs de beiras de rios ainda têm um papel primordial na proteção das margens e evitam assoreamento e erosão.
“A proteção dessas áreas é tão relevante que foram declaradas propriedades da Coroa na Carta Régia já em 1797”, aponta o livro ‘Uma breve história da Legislação Florestal Brasileira’. Sua proteção foi prevista pela legislação desde o Código Florestal de 1934, à época chamadas de “florestas protectoras” que tinham, dentre suas funções, a de conservar o regime das águas.
Para o assessor em advocacy e políticas do Observatório do Código Florestal, Marcelo Elvira, é inegável a função da RL e das APPs no combate a eventos extremos como o enfrentado pelo estado pelo papel desenvolvido no regime das águas e equilíbrio ecológico.
“Quanto mais o Código Florestal estiver implementado e essas áreas protegidas, maior a capacidade do ecossistema reagir positivamente a eventos extremos. No RS, a falta de regulamentação do PRA mostra o total descaso com a agenda ambiental e a real percepção sobre o tamanho do problema”, comenta.
O PRA é o conjunto de medidas destinadas à adequação ambiental de propriedades rurais conforme o previsto pela legislação federal de proteção à vegetação nativa.
“A falta de regulamentação do PRA gera incertezas para os proprietários rurais, que não têm regras estabelecidas sobre como proceder à regularização ambiental das propriedades rurais”, ressaltou Jarlene Gomes, pesquisadora do Ipam Amazônia, uma das instituições responsáveis pelo Termômetro do Código Florestal.
ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE SOB ATAQUE
Não bastasse a falta de funcionamento do programa que permite a recuperação das áreas previstas pela lei, o governo estadual do RS também aprovou em março deste ano e no sentido contrário ao estabelecido pela legislação federal a lei nº 16111/2024, que permite projetos de irrigação em APPs e aumenta, assim, o risco de desmatamento dessas áreas de grande sensibilidade ecológica ao facilitar a realização de intervenções nesses locais.
Em entrevista ao programa Roda Viva no dia 20 de maio, o governador do estado do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, defendeu a nova legislação e justificou a aprovação pelos efeitos da estiagem sofridos pelo estado em 2023 ao ser questionado a respeito da flexibilização ambiental promovida pelo governo e criticada por entidades de referência da sociedade civil organizada.
Em março do ano passado, mais de 70% dos municípios gaúchos decretaram situação de emergência pela perdas de produção impostas pela seca no estado.
Especialistas e estudos mostram, entretanto, que a integridade dos serviços ecossistêmicos promovidos pelas APPs, sob risco com a lei aprovada, são responsáveis pela diminuição de efeitos erosivos e de impactos decorrentes da perda de solo fértil, processo que provoca prejuízo de produtividade e renda no campo.
Além disso, obras de irrigação em APPs resultam no proliferamento de represamentos ao longo dos rios e cursos d’águas, o que impacta diretamente na qualidade e disponibilidade das águas e gera conflitos no campo.
Em 2022, o Observatório das Águas e o Observatório do Código Florestal (OCF) lançaram a nota técnica “Obras de irrigação em áreas de preservação permanente: utilidade pública para quem?” com análise do de medidas que atacam e flexibilizam o desmatamento dessas áreas para atividades de irrigação.
Malu Ribeiro, diretora da SOS Mata Atlântica, membro do OCF e do Observatório das Águas, enfatiza que tais mudanças alteram significativamente os ecossistemas, reduzem a biodiversidade e comprometem os usos múltiplos da água nas bacias hidrográficas brasileiras.
“Ou seja, rios que eram de corredeira e de velocidade viram águas paradas e há um impacto grande na qualidade dessas águas”, explica. “Isso altera todos os ecossistemas e perde biodiversidade, perde a qualidade da água e, com isso, perde a possibilidade de usos múltiplos da água. Portanto, é um projeto de lei equivocado e que beneficia um usuário em detrimento de todos os outros usuários da água das bacias hidrográficas brasileiras”, finaliza.
A nível federal, um projeto de lei similar está em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. O projeto de lei nº 2168/21 considera como “utilidade publica”, exceção prevista pelo Código Florestal, projetos de irrigação e dessedentação animal.
Apresentada sob a justificativa das áreas serem “um dos principais entraves para o crescimento da área irrigada no país”, a medida já foi aprovada na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) e na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS).
Em dezembro de 2023, também foi aprovado no Senado Federal o projeto de lei nº 1282/19, que libera a construção de reservatórios para projetos de irrigação em APPs. De autoria do senador do Rio Grande do Sul Luis Carlos Henze (PP-RS), a medida deve ainda ser apreciada pela Câmara dos Deputados.
FLEXIBILIZAÇÃO DO NOVO CÓDIGO AMBIENTAL GAÚCHO E AMEAÇA AO PAMPA
Sancionado pelo governador do estado em 2019, o novo Código Estadual do Meio Ambiente teve mais de 500 alterações apontadas como graves à proteção ambiental do estado. O novo código foi alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), de número 6681, no Supremo Tribunal Federal (STF), ajuizada no ano seguinte pela Procuradoria Geral da República (PGR).
A mudança mais criticada por especialistas da nova lei é o estabelecimento da Licença Ambiental por Compromisso (LAC), concedida em até 48 horas pelo sistema online do órgão de licenciamento ambiental do estado sem análise técnica prévia.
Outro ponto polêmico do novo Código Ambiental é a proteção do Pampa no estado sulista.
Um dos mais biodiversos biomas brasileiros, o Pampa gaúcho tem uma extensão total de mais de 17 milhões de hectares e conta com grande parte de área ameaçada, degradada e descaracterizada. É, também, o bioma portador da menor proporção de áreas protegidas dentre os biomas brasileiros.
De acordo com dados do Mapbiomas, entre 1985 e 2021 o bioma em terras rio-grandenses perdeu quase 3 milhões de hectares — uma redução de 30% em quatro décadas – enquanto o uso agrícola no solo avançou 2,1 milhões de hectares.
O novo texto afirma que o bioma terá suas características e proteção definidas por lei específica, contudo autoriza diversos usos do solo da região sem necessidade de autorização do órgão ambiental.
A publicação “Pampa: desafios e oportunidades para a conservação do bioma“, organizada pelo OCF com a participação de especialistas do bioma, aponta que a ausência de instrumentos jurídicos para a proteção de formações campestres fragiliza a conservação da área.
Diferente da Amazônia, Pantanal e Mata Atlântica, o Pampa não possui status de Patrimônio Nacional ou lei específica que regula a sua conservação. Dessa forma, as únicas proteções conferidas aos remanescentes de vegetação nativa em propriedades rurais do bioma são as previstas pelo Código Florestal, que estabelece as APPs e a proteção de 20% de reserva legal.
Mas apesar da regulamentação das formas de vegetação nativa, a lei é omissa em relação à regulação do uso sustentável das vegetações não florestais, como é o caso dos campos do Pampa. E isso dificulta a implementação do Código Florestal no bioma.
“Especificamente, o Código Florestal falha por não caracterizar as formas de exploração econômica autorizadas em RL não florestais (Art. 20 a 24 do CF) e por não estabelecer a necessidade de instrumentos regulatórios específicos, negligenciando, por exemplo, a importância do manejo pastoril para a manutenção da biodiversidade e modos de vida tradicionais do Pampa”, discorre o documento.
Uma das recomendações de soluções para os especialistas ouvidos na publicação é a revisão do novo Código estadual, que ratificou o Decreto Estadual nº 52.431, de 2015, ao classificar os campos nativos sob uso agrossilvopastoril anterior a julho de 2008 como áreas de uso rural consolidadas.
Na prática, permite que os campos nativos usados na atividade pastoril sejam declarados, no Cadastro Ambiental Rural (CAR), como “área rural consolidada por supressão de vegetação nativa com atividades pastoris”.
A categoria é prevista pelo Código Florestal para áreas com desmatamento anterior a 2008, o que isenta os imóveis rurais de sanções, permite uso dessas áreas e, no caso de pequenas propriedades (de até quatro módulos fiscais), são flexibilizadas as regras da reserva legal. Em alguns casos, inclusive, a propriedade pode ser dispensada da conservação dessa área.
“Assim como a pecuária extensiva é uma atividade secular no Pampa, a maioria dos imóveis rurais do bioma estaria total ou parcialmente dispensada da obrigação da RL. E a classificação como área consolidada reduziria sensivelmente a extensão de APPs a ser protegida. A dispensa da RL coloca as áreas campestres sob forte risco de conversão para outros usos da terra como a sojicultura, contribuindo para a degradação e descaracterização do bioma e do modo de vida de sua população pecuarista tradicional”, mostra o documento.
Em 2022, completados dez anos da aprovação do Código Florestal, a promotora de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP/RS), Annelise Steigleder abordou em evento do observatório a falta de proteção jurídica do bioma. A promotora informou que, em julho de 2015, após o decreto posteriormente validado pelo código estadual, a promotoria ingressou com ação civil pública contra o Estado com o objetivo de assegurar a manutenção da reserva legal nas áreas do bioma com atividade pecuária. A ação ainda está pendente de julgamento final.
Mais recentemente, o Congresso Nacional ainda ampliou o risco da classificação para outros biomas.
Em março deste ano, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei nº 364/19, que considera formas de vegetação nativa ‘predominantemente não florestais’, como campos gerais, campos de altitude e campos nativos, que serão consideradas áreas rurais consolidadas.
De acordo com análise da SOS Mata Atlântica, a medida aprovada na comissão deixa desprotegidos 48 milhões de hectares de vegetação não florestal no Brasil.
A nova proposta também anula a aplicação da Lei da Mata Atlântica e de qualquer lei especial de proteção ambiental em todo território nacional, ao dispersar “disposições conflitantes contidas em legislações esparsas, como aquelas que se referem apenas a parcelas do território nacional”, caso da legislação.
A medida, assim, renega a importância dos campos nativos, áreas estratégicas para manutenção da biodiversidade e da segurança hídrica e climática. O projeto deve seguir para apreciação do Senado Federal.
Texto: Júlia Beatriz Oliveira
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