Essas populações não têm recursos para fazer o cadastro e, segundo o Código Florestal, o governo é obrigado a fazê-lo, informá-las e apoiá-las com esse objetivo. Segundo as lideranças das comunidades, no entanto, isso não tem acontecido. Quem não se cadastrar até o fim do mês vai perder vários benefícios previstos na lei, como acesso a crédito agrícola e a políticas públicas vinculadas ao CAR.
Até o final do ano passado, quase dois mil cadastros de territórios tradicionais já haviam sido feitos, somando quase 27 milhões de hectares. A informação disponível, no entanto, é que a imensa maioria é composta de Unidades de Conservação (UC) federais e estaduais, principalmente Reservas Extrativistas (Resex), que abrigam ribeirinhos e extrativistas, são geridas diretamente pela administração pública e cujas informações já estão acessíveis. O déficit de registros entre os quilombolas, por exemplo, continua grande. O Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR) não dispõe da informação por segmento de população tradicional, o que dificulta o mapeamento mais completo do problema.
As comunidades tradicionais também temem que, do jeito que está o módulo de cadastramento, ele prejudique sua regularização fundiária. Com as disputas por terra em todo país, há muitas áreas de terceiros sobrepostas aos territórios. O receio é que a possibilidade de registro dessas áreas no CAR fortaleça as pressões de grileiros e fazendeiros contra a regularização. Sobretudo na Amazônia, já há casos em que grileiros e fazendeiros estão usando o CAR para tentar legalizar áreas ocupadas irregularmente.
O ISA e a Coordenação Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) produziram uma animação para orientar e informar as comunidades tradicionais sobre o assunto (veja abaixo). No ano passado, o ISA também publicou uma série de reportagens sobre o CAR e uma delas tratava dos territórios tradicionais (leia aqui).
Há mais de um ano, representantes dos quilombolas, da sociedade civil e do Ministério Público Estadual do Pará negociam com o governo federal adequações ao módulo. Recentemente, o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) entrou nas conversas.
Em outubro, o ISA e o CNPCT, com apoio do Observatório do Código Florestal, realizaram uma oficina sobre o assunto com dezenas de representantes das comunidades. Como resultado, eles apresentaram ao governo uma lista de propostas de ajustes do módulo e uma agenda para sua implementação.
Poucas delas avançaram, porém, de acordo com a assessora do ISA Milene Maia Oberlaender. Ela defende que o prazo para o CAR seja prorrogado apenas para comunidades tradicionais e agricultores familiares. O prazo geral do cadastro, para todos os produtores e comunidades rurais, já foi postergado duas vezes, mas é muito pouco provável que o governo faço isso de novo.
“É necessário que o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), órgão responsável pelo CAR, seja mais ágil com as devidas melhorias do módulo, respeitando as normativas que garantem os direitos dos povos tradicionais”, afirma Oberlaender. “A responsabilidade de fazer o CAR é do Poder Público e as comunidades não podem ser prejudicadas pela omissão ou lentidão dos órgãos oficiais”, destaca.
Os representantes das comunidades tradicionais seguem cobrando do governo a implantação de um alerta de cadastros sobrepostos aos seus territórios e que eles só possam ser registrados na totalidade de seus perímetros. As lideranças lembram que, segundo a legislação, os títulos quilombolas, por exemplo, são coletivos e indivisíveis.
Elas também reivindicam que não sejam registradas feições internas das suas terras, como as Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a Reserva Legal (RL), ambas previstas no Código Florestal. De acordo com as comunidades, sua lógica de gestão dos recursos naturais é diferente daquela dos imóveis privados. Levantamento do Ministério do Meio Ambiente sobre 279 territórios quilombolas indica que cerca de 87% da sua extensão é coberta com com vegetação nativa.
“A obrigatoriedade de definir as APPs e RLs para os territórios tradicionais fere o pluralismo jurídico previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o respeito às regras próprias das comunidades em gerir seus territórios”, analisa Oberlaender. “A Constituição considera os territórios tradicionais espaços especialmente protegidos, com regime jurídico similar das UCs”, argumenta.
Ela menciona ainda que a Corte Interamericana de Direitos Humanos determina o mesmo tratamento dado às Terras Indígenas deve ser aplicado aos quilombos. Portanto, o cadastro dessas áreas deve seguir o mesmo tratamento das TIs e UCs, que têm apenas o perímetro integral cadastrado.
As poucas adaptações realizadas pelo governo foram a substituição do termo “imóvel rural” por “território tradicional”, no caso de cadastros desse tipo; a inclusão de 28 segmentos de comunidades tradicionais que podem ser registradas; e a possibilidade de inclusão do nome de mais de uma organização em nome da qual o território pode ser cadastrado.
O CAR é um instrumento definido em âmbito nacional pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012) com o objetivo de criar um registro de todos os imóveis rurais no país, integrando as informações ambientais em uma base de dados para viabilizar a regularização ambiental dos imóveis rurais e garantir o controle, monitoramento e combate ao desmatamento no Brasil. No CAR, é feito o registro das áreas desmatadas, de Reserva Legal (RL), Preservação Permanente (APPs), áreas de Uso Consolidado, de Uso Restrito e as que devem ser reflorestadas. Apesar de ter se tornado obrigatório para todo o país com o Código Florestal, o CAR já era utilizado antes de 2012 em estados da Amazônia Legal como parte das políticas de redução do desmatamento no bioma.
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