Votação de medida que classifica obras de irrigação como atividades de “utilidade pública” acontece na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) nesta terça-feira, 9
Nesta terça-feira, 9, a Câmara dos Deputados se prepara para votar o projeto de lei nº 2.168/2021, que coloca sob maior risco de desmatamento as áreas de preservação permanente (APPs), protegidas pelo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012). De autoria do ex-deputado José Mario Schreiner, o projeto está em pauta na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados.
O projeto de lei propõe o enquadramento de obras de infraestrutura de irrigação e dessedentação animal como atividades de “utilidade pública”, uma das exceções para a supressão de vegetação nativa das APPs previstas pelo Código Florestal, junto de interesse social e baixo impacto ambiental.
As APPs são áreas de margens de rios, topos de morros e locais de extrema importância ecossistêmica e manutenção da biodiversidade, das águas e dos solos.
Apresentada sob a justificativa das áreas serem “um dos principais entraves para o crescimento da área irrigada no país”, a medida já foi aprovada na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) e na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS).
Em 2022, o Observatório das Águas e o Observatório do Código Florestal (OCF) lançaram a nota técnica “Obras de irrigação em áreas de preservação permanente: utilidade pública para quem?” com análise do impacto dessa e de outras medidas que atacam e flexibilizam o desmatamento dessas áreas para atividades de irrigação.
Em dezembro de 2023, foi aprovado no Senado Federal o projeto de lei nº 1282/19, que libera a construção de reservatórios para projetos de irrigação em APPs. De autoria do senador Luis Carlos Henze (PP-RS), a medida deve ainda ser apreciada pela Câmara dos Deputados.
PERDA DE PRODUTIVIDADE E AGRAVAMENTO DE ESCASSEZ HÍDRICA
Dentre os diversos serviços ecossistêmicos promovidos pelas APPs levantados, especialistas mostraram que a integridade delas, ou seja, a manutenção da vegetação nativa, contribui diretamente na diminuição de efeitos erosivos e de impactos decorrentes da perda de solo fértil, processo que provoca prejuízo de produtividade e renda no campo.
A nota aponta que áreas com florestas nativas apresentam em média uma perda de apenas 4 kg de solo por hectare/ano, enquanto áreas de plantio de soja e algodão têm perdas que ultrapassam a 20 toneladas por hectare/ano.
De acordo com um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU), o processo de erosão do solo também pode provocar uma perda de até 10% da produção agrícola até 2050.
Além disso, um levantamento do MapBiomas mostrou que o Brasil conserva, no solo, o equivalente a 70 anos de emissões de dióxido de carbono (CO²), principal gás potencializador da crise climática, que afeta diretamente as condições de produção no campo.
As obras de irrigação também resultam no proliferamento de represamentos ao longo dos rios e cursos d’águas, o que impacta diretamente na qualidade e disponibilidade das águas.
Malu Ribeiro, diretora da SOS Mata Atlântica, membro do OCF e do Observatório das Águas, enfatiza que tais mudanças alteram significativamente os ecossistemas, reduzem a biodiversidade e comprometem os usos múltiplos da água nas bacias hidrográficas brasileiras.
“Ou seja, rios que eram de corredeira e de velocidade viram águas paradas e há um impacto grande na qualidade dessas águas”, explica. “Isso altera todos os ecossistemas e perde biodiversidade, perde a qualidade da água e, com isso, perde a possibilidade de usos múltiplos da água. Portanto, é um projeto de lei equivocado e que beneficia um usuário em detrimento de todos os outros usuários da água das bacias hidrográficas brasileiras”, finaliza.
ÁGUA: BEM COMUM
O benefício em detrimento de outros, aponta a análise, tem potencial de agravar conflitos por recursos hídricos, visto que a desproteção das áreas “leva à degradação rápida dos corpos d’água e aumenta a fragilidade em eventos climáticos extremos.”
“A ausência de planejamento e regulação nacionais para barramentos de cursos d’água levará a novos desmatamentos e a risco de apropriação dos recursos hídricos para atividades privadas, ampliando a escassez hídrica, comprometendo o uso múltiplo da água, garantido por lei, em especial com impactos negativos para a agricultura familiar e pequenos produtores rurais, para o abastecimento público e o consumo humano”, aponta ainda o documento.
A nota técnica mostra que o projeto de lei, por ser de natureza eminentemente privada, vai de encontro ao estabelecido pela Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997). A lei se baseia no fundamento de que a água é bem de domínio público e recurso natural limitado, dotado de valor econômico, e que sua sua gestão deve sempre proporcionar o uso múltiplo.
“Embora a Lei preveja que em situações de escassez o uso prioritário deva ser o consumo humano e a dessedentação de animais, a gestão deve sempre contar com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades”, aponta a nota ao indicar que a apropriação dos recursos hídricos para irrigação desses projetos de lei fogem desses fundamentos.
“É inadmissível você colocar dentre as questões que são reconhecidas como de utilidade pública ou finalidade social, uma atividade privada que é o agronegócio. […] É um projeto de lei equivocado e que beneficia um usuário em detrimento de todos os outros usuários da água das bacias hidrográficas brasileiras”, comenta Malu.
Para os especialistas, para garantir sustentabilidade ambiental e financeira da produção agrícola no Brasil a longo prazo é necessário “aplicar a legislação vigente, proteger a vegetação natural e estabelecer planejamento e regulação nacionais do uso dos recursos hídricos, fortalecendo a gestão integrada dessas políticas públicas”.
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