Fonte: O Globo
O julgamento das Ações de Inconstitucionalidade do Código Florestal (ADINs) pelo Supremo Tribunal Federal encerra a fase de insegurança jurídica de uma lei publicada em maio de 2012 e que até agora não foi devidamente cumprida e implementada no campo devido às incertezas sobre a sua validade. Vale lembrar que esta lei é um dos principais instrumentos que trata da conservação da vegetação nativa em nosso país, uma vez que regula a manutenção, o uso e o corte da vegetação em imóveis privados. Isto significa por volta de 280 milhões de hectares, ou quase metade das florestas do país.
Em geral, o julgamento manteve a constitucionalidade da maior parte dos artigos em questão. Isto na prática representa a manutenção da anistia de algo em torno de 41 milhões de hectares que desrespeitaram a lei vigente antes 2008 e tiveram esta enorme dúvida perdoada pela lei aprovada em 2012.
A leitura é de uma derrota do meio ambiente e uma vitória dos ruralistas. O que isto de fato significa? Uma parte da anistia implica na perda de serviços ambientais essenciais para a manutenção da biodiversidade, da água, da economia, da qualidade de vida nas cidades e para a própria agricultura. Por exemplo, a manutenção da regra da escadinha e da medida dos leitos dos rios a partir da vazão média ao invés da máxima resulta na desproteção de mais de 4,5 milhões de hectares de matas ciliares que foram cortados ilegal e indevidamente no passado e que deveriam estar protegidos e não precisarão mais ser recuperados. Se as nascentes intermitentes passaram a ser protegidas pelo julgamento do STF, segue a redução da área florestal necessária para a sua proteção, que foi reduzida de 50 para somente 15 metros. As funções ecológicas destas matas ciliares e de nascentes para a proteção do solo e da água são insubstituíveis e a falta destes 4,5 milhões de hectares implica em ameaça para o suprimento de água para as cidades, para as indústrias e para a irrigação.
O julgamento também manteve a possibilidade da compensação de Reservas Legais em distâncias muito grandes de onde a floresta deveria estar presente e a restauração de áreas anistiadas combinando-se espécies nativas com exóticas. Novamente, isto restringe em grande medida a provisão de serviços ambientais e deve resultar na proteção de florestas que não estão ameaçadas e a ausência de matas em regiões que possuem pequena cobertura com vegetação a nativa e o plantio de árvores é essencial. Podemos ter o código cumprido no país e continuar a ter regiões com menos de 5% de cobertura florestal, como ocorre no estado de São Paulo, que já esteve no epicentro da crise hídrica e onde a agricultura exige cada vez mais agrotóxicos devido à falta de biodiversidade para controlar as pragas e doenças, e as safras podem ser menores pela ausência de polinizadores nas lavouras.
Por fim, manteve-se a regra de que a dívida do proprietário de terra deve ser contada em função da regra vigente na data do desmatamento. Isto precisa ser definido nos Programas de Regularização Ambiental e a regra de cada estado pode aumentar ainda mais a anistia. No estado de São Paulo a interpretação desta regra para o Cerrado pode implicar na diminuição da exigência de restauração de dezenas de milhares de hectares de vegetação nativa.
E a decisão do STF é uma boa notícia para a agricultura brasileira? Depende… Para a visão de curto prazo, pode ser uma ótima notícia. “Não segui a lei e estou dispensado de reparar o que deveria feito, ótimo”. Para o produtor sério e responsável que sempre cumpriu a lei, fica a sensação de ter sido o trouxa e que cumprir a lei não vale a pena. No longo prazo, há razoáveis evidencias cientificas de que manter e recuperar florestas interessa para a sustentabilidade da produção, com atenuação das mudanças climáticas, das crises hídrica etc.
Para a sociedade brasileira e global também parece que ter uma lei que protege florestas, um dos maiores ativos da Humanidade para o presente e para o futuro, interessaria. Ué, e porquê não temos uma lei que combina os interesses dos produtores e da sociedade? Na minha opinião, porque o Brasil não tem uma visão de longo prazo e muito menos do interesse público em primeiro lugar. Se ter florestas interessa a todos, mas pode ter impactos para os produtores, precisamos de instrumentos que garantam a sua renda, mas não que isto aconteça necessariamente ao custo do meio ambiente e do interesse coletivo. A energia dos produtores poderia ter sido canalizada para a regulamentação dos incentivos econômicos para o cumprimento do Código Florestal ao invés de se preocupar com a garantia da anistia.
De todo modo, agora temos a lei julgada e definida. Com toda a sua controvérsia, agora ela deve ser cumprida. E para isto ainda resta um longo caminho. O Cadastro Ambiental Rural somente agora está encerrando a sua fase autodeclaratória e precisa ser validado. Os PRAs de alguns estados já foram publicados, mas muitos ainda não foram. A boa notícia é que um número razoável de estudos tem sido realizados e apontado os caminhos para o cumprimento da lei. Um deles aponta um atalho, pois identificou que a maior parte da dívida atual da lei está concentrada na mão de poucos grandes produtores. Estimamos que 94% da dívida está concentrada em 362 mil grandes e médios imóveis rurais do Brasil e este público deveria ser o alvo para a implementação das regras do código no campo. Agora é fazer valer a lei.
Luís Fernando é pesquisador do Imaflora e membro do Observatório do Código Florestal
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