06 de maio de 2014
João de Deus Medeiros*
Após o intenso processo de revisão legislativa do Código Florestal, em 28 de maio de 2012 o Diário Oficial da união publicava a lei nº 12.651, dispondo sobre a proteção da vegetação nativa. Essa norma revogou a lei nº 4.771 de 1965, o agora antigo “Novo Código Florestal”. Sua aprovação no Congresso Nacional se deu numa atmosfera tensa, muitas vezes traduzida pela reducionista polarização ambientalistas x ruralistas.
Sem entrar no mérito dos argumentos utilizados, o fato é que a aprovação da lei 12.651 representou o pacto possível naquele cenário, e previsivelmente não agradou integralmente a qualquer das partes. Não obstante, se adotarmos a compreensão do filósofo Charles Frankel que define responsabilidade como o produto de arranjos sociais definidos, fica evidente que esse arranjo possível, traduzido pela aprovação da lei 12.651, impõe responsabilidades aos atores envolvidos, e como regra, tais arranjos criam, de alguma maneira, coerção. Compreendendo coerção como o ato de induzir ou compelir alguém a fazer algo.
Na origem dos conflitos que emergiram durante o processo legislativo de revisão do Código Florestal, a inobservância complacente e generalizada da norma legal figura como elemento central. A norma anterior (lei 4.771) criou restrições administrativas ao direito de propriedade, instituindo as figuras de área de preservação permanente (APP) e de reserva legal (RL). Impelidos pela forte conotação patrimonialista que permeia nossa sociedade, a coerção criada com a lei 4.771 foi solenemente negligenciada, não gerando assim a responsabilidade almejada. Num cenário em que grande parte dos proprietários de terras rurais ou urbanas encontrava-se em situação irregular, a cobrança de adequação aos termos legais se mostrava inviável, legitimando e impulsionando assim o referido processo de revisão.
A solução encontrada pelo Congresso Nacional foi manter a essência dos institutos da APP e da RL, ainda que com algumas alterações, e criar um capitulo de disposições transitórias, visando abrigar nele uma via alternativa para a indução da regularização dos passivos ambientais criados pela inobservância da antiga norma. Mesmo sendo alvo de inúmeras críticas, veiculadas simbolicamente como anistia aos desmatadores, o fato é que essas disposições transitórias ainda continham, sob algum grau, coerção: a lei exige, notadamente no caso da APP, algum investimento na recomposição das áreas convertidas irregularmente. Essas exigências estão elencadas no artigo 61-A da lei 12.651.
Como produto desse novo arranjo social, a lei impõe assim responsabilidades aos administrados e ao Estado. Particularmente a União, os Estados e o Distrito Federal foram impelidos a, no prazo de 1 ano, contado a partir da data da publicação da lei (no caso 28 de maio de 2012), prorrogável por uma única vez, por igual período, por ato do Chefe do Poder Executivo, implantar Programas de Regularização Ambiental – PRAs de posses e propriedades rurais, com o objetivo de adequá-las aos termos deste Capítulo. Essa é a previsão contida expressamente no artigo 59 da lei. O capítulo a que se refere o referido artigo é exatamente o capítulo XIII, que trata das “Disposições Transitórias”. E aqui começamos a reeditar os conflitos que desencadearam o processo de revisão da antiga lei, ou seja, sua inobservância.
O mais grave, nesse caso, é que a irresponsabilidade pela implementação do novo pacto produzido se dá pela própria administração pública, a quem a constituição Federal, nosso pacto maior, impõe a obediência a legalidade e eficiência, dentre outros (Art. 37 da CF).
Os PRAs, referidos no artigo 59, não foram implantados. O prazo legal concedido a União, Estados e Distrito Federal, expirou em 28 de maio de 2013. Não houve, por parte da Presidente da República (Chefe do Poder Executivo) edição de ato que prorrogasse, por mais um ano, o referido prazo. O texto legal não concedeu uma prerrogativa, ele determinou, compeliu União, Estados e Distrito Federal a fazê-lo. Não implantar PRAs configura, portanto, ilegalidade. Qual consequência? A rigor, por mais absurdo que pareça, a penalização pela inobservância da norma, nesse caso, recai sobre o administrado. E aqui reeditamos o antigo dilema romano Quis custodiet ipsos custodes? (Quem fiscaliza o fiscal?).
Aproximando-se do segundo aniversário da lei 12.651 o Poder executivo Federal edita o Decreto nº 8.235, estabelecendo normas gerais complementares aos Programas de Regularização Ambiental dos Estados e do Distrito Federal – PRA, de que trata o Decreto no 7.830, de 17 de outubro de 2012, e institui o Programa Mais Ambiente Brasil. Uma rápida análise nesse Decreto remete necessariamente a dois questionamentos básicos: 1. Teria o mesmo a base legal necessária, considerando que o prazo legal para a implementação de tais programas expirou em 28 de maio de 2013?
2. Efetivamente o referido Programa atende ao disposto no Art. 59 da lei 12.651?
Entendo que a extrapolação do prazo compromete a legalidade do Decreto 8.235. O texto do art. 13 do Decreto, ao instituir o Programa Mais Ambiente Brasil, com o objetivo de apoiar, articular e integrar os Programas de Regularização Ambiental dos Estados e do Distrito Federal, mesmo afirmando que o faz em atendimento ao disposto no art. 59 da Lei no 12.651, de 2012, em essência contraria o mesmo.
O art. 59 da lei 12.651 é bastante objetivo e auto aplicável, e ele determina que a União, os Estados e o Distrito Federal deverão, no prazo de 1 (um) ano, contado a partir da data da publicação desta Lei, prorrogável por uma única vez, por igual período, por ato do Chefe do Poder Executivo, implantar Programas de Regularização Ambiental – PRAs de posses e propriedades rurais, com o objetivo de adequá-las aos termos deste Capítulo. Logo ao remeter como objetivo do PRA da União o apoio, articulação e integração dos PRAs dos Estados e do DF, o decreto 8.235 altera o objetivo expresso no artigo 59, deixando portanto de atende-lo.
Ao dizer que estabelece normas gerais complementares aos Programas de Regularização Ambiental dos Estados e do Distrito Federal – PRA, mais uma vez nos deparamos com a objetiva inobservância da lei. A lei definiu que na regulamentação dos PRAs, a União estabeleceria, em até 180 (cento e oitenta) dias a partir da data da publicação da Lei, normas de caráter geral, incumbindo-se aos Estados e ao Distrito Federal o detalhamento por meio da edição de normas de caráter específico, em razão de suas peculiaridades territoriais, climáticas, históricas, culturais, econômicas e sociais, conforme preceitua o art. 24 da Constituição Federal. Além do que, essas normas de caráter geral foram editadas através do Decreto nº 7.830, de 17 de outubro de 2012, portanto dentro do prazo legal estabelecido de 180 dias.
Se o prazo legal para implantação dos PRAs pela União, Estados e DF extrapolou, qual a eficácia dessa complementação de normas gerais sobre programas que, em tese, não encontram mais o respaldo legal necessário?
Ao não observar a norma legal, União, Estados e Distrito Federal, eliminaram a possibilidade de regularização com base nas disposições transitórias da lei, e assim as exigências contidas no artigo 61-A não mais poderão ser aplicadas para balizar as exigências de recomposição de APP. Isso porque elas tinham um prazo de validade definido, o qual, como demonstrado, expirou em maio de 2013. Não há também porque falar em vacância da lei, pois essa, no Capítulo II, que trata das áreas de preservação Permanente, define claramente os limites das diferentes APPs, assim como seu regime de uso, determinando que tendo ocorrido supressão de vegetação situada em Área de Preservação Permanente, o proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título é obrigado a promover a recomposição da vegetação, ressalvados os usos autorizados previstos na Lei. Tal obrigação, diz a lei, tem natureza real e é transmitida ao sucessor no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural (Art. 7º). Desse modo, se admitimos que o princípio da legalidade imponha efetivamente alguma responsabilidade, cabe à administração pública cobrar a recomposição da vegetação em APP suprimida irregularmente. Não obstante, ela, administração pública, não tem qualquer amparo para fazer com que tal exigência não observe os limites mínimos de APP estabelecidos no artigo 4º da lei 12.651. Em outros termos, o arranjo social que poderia gerar um saudável processo de regularização de passivos, e consequentemente reforçar a base legal de cobrança pela manutenção das APPs íntegras, foi quebrado por inércia do Estado, notadamente pela irresponsabilidade da União que não disponibilizou o Cadastro Ambiental Rural (CAR), não implantou PRA, e não editou ato prorrogando o prazo para que ela (União), Estados e Distrito Federal tivessem o devido amparo legal para implanta-los. Assim sendo, o Decreto 8.235 de 2014 somente se justificaria se tratasse de repassar essa orientação geral, qual seja de promover a regularização dos passivos com base nas disposições permanentes da lei 12.651, e não mais nos limites definidos no capitulo XIII, das Disposições Transitórias. Da forma como apresentado o Decreto 8.235 tem eficácia nula ou, pelo menos, altamente questionável.
*Professor Associado Departamento de Botânica da Universidade Federal de Santa Catarina
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