Contexto
O Pampa se estende por 176, 5 mil quilômetros quadrados, ocupando, na sua porção brasileira, 68% da área do Rio Grande do Sul, estado ao qual está restrito. O bioma abrange ainda trechos da Argentina e do Uruguai.
No bioma prevalecem formações campestres1 diversas com espécies nativas tradicionalmente manejadas. Formações florestais também ocorrem simultaneamente com os campos na região do Escudo Sul- -rio-grandense, matas ciliares e de encosta.
Os campos do Pampa são herança de condições paleoclimáticas glaciais que, apesar do aquecimento característico do Holoceno (≈5.000 anos), permaneceram campestres devido ao pastejo por pequenos mamíferos e por intervenções antrópicas, como o uso do fogo [1]. Com a colonização da região a partir do século XVII, houve a introdução de rebanhos com criação extensiva, atividade reconhecida como essencial para a manutenção da biodiversidade nativa dos campos [2].
Apesar da fragilidade de seus ecossistemas e da importância de suas paisagens culturais para a conservação da biodiversidade e provisão de serviços ecossistêmicos2 , o Pampa é um bioma ameaçado, fortemente degradado e descaracterizado, com a menor proporção de áreas protegidas entre os biomas brasileiros [4]. O mapeamento anual das mudanças de uso e cobertura do solo no bioma revelou a perda de 2 milhões de hectares de campos nativos nos últimos 34 anos [5]. A perda de vegetação nativa se concentrou principalmente nos últimos 10 anos, e, em 2014, a área dedicada à agricultura anual superou a área de vegetação campestre pela primeira vez3 [5]. A expansão do cultivo anual de grãos, especialmente da soja, é uma das maiores ameaças ao bioma.
O avanço da sojicultura a partir da década de 1970 impactou inicialmente as formações no noroeste do bioma, como os campos de capim barba-de-bode, mas logo se estendeu para outras regiões. Outras ameaças ao bioma são a expansão da silvicultura, das pastagens com espécies exóticas, os megaprojetos de mineração e o êxodo rural, pois a retirada de rebanhos facilita a expansão de formações florestais sobre os campos nativos.
Finalmente, a frágil governança ambiental no Pampa é uma ameaça importante, que se intensificou com ataques recentes às salvaguardas ambientais jurídicas, como ao Código Florestal de 2012 (CF, Lei nº 12.651/2012). Assim, este capítulo busca identificar os principais desafios e soluções para a conservação do bioma Pampa, baseado em um workshop promovido pelo Observatório do Código Florestal (OCF) em outubro de 2020, que reuniu diversos especialistas que atuam na região.
Desafio 1: Assegurar e ampliar a proteção jurídica ao bioma Pampa.
A ausência de instrumentos jurídicos específicos para a proteção de formações campestres e para o bioma fragiliza a conservação do Pampa. Ao contrário da Amazônia, Pantanal e Mata Atlântica, o Pampa não possui status de Patrimônio Nacional (Constituição Federal de 1988, Art. nº 225, §4), ou lei específica regulando a sua conservação. Dessa forma, as únicas proteções conferidas aos remanescentes de vegetação nativa em imóveis rurais do bioma são as previstas pelo CF, que estabelece as Áreas de Preservação Permanente (APP) e de Reserva Legal (RL) (20% do imóvel rural do bioma).
Contudo, apesar de regulamentar a proteção e uso de todas as formas de vegetação nativa (Art. 1 do CF), a lei é omissa em relação à proteção e regulação do uso sustentável das vegetações não florestais, como os campos do Pampa [6], o que dificulta a sua implementação no bioma. Especificamente, o CF falha por não caracterizar as formas de exploração econômica autorizadas em RL não florestais (Art. 20 a 24 do CF) e por não estabelecer a necessidade de instrumentos regulatórios específicos, negligenciando, por exemplo, a importância do manejo pastoril para a manutenção da biodiversidade e modos de vida tradicionais do Pampa.
Já em outras passagens, o texto do CF atrela sanções à supressão irregular da vegetação nativa ao termo desmatamento, falhando em utilizar uma terminologia que se refira a processos de conversão da cobertura da terra em biomas não florestais [6]. Essas omissões fortalecem a percepção errônea de que o CF regulamenta apenas a proteção das vegetações florestais, quando na realidade deve abarcar todas as vegetações nativas [6].
A deficiência do CF em proteger os campos nativos do Pampa torna ainda mais estratégica a edição de normas protetivas em âmbito estadual. Entretanto, o contrário ocorreu com a recente publicação de decretos e leis estaduais que criaram uma grave situação de insegurança jurídica para a já ineficiente conservação dos campos nativos do Pampa.
Solução 1.1: Revisar o Código Estadual de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (CEMA, Lei nº 15.434/2020).
O Código Estadual de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (CEMA) de 2020 ratificou o Decreto Estadual nº 52.431/2015 ao classificar os campos nativos sob uso agrossilvopastoril anterior a julho de 2008 como áreas consolidadas4, e, portanto, áreas aptas para aplicação dos artigos nº 67 e nº 68 do CF. Assim, como a pecuária extensiva é uma atividade secular no Pampa, a maioria dos imóveis rurais do bioma estaria total ou parcialmente dispensada da obrigação da RL. E a classificação como área consolidada reduziria sensivelmente a extensão de APPs a ser protegida. A dispensa da RL coloca as áreas campestres sob forte risco de conversão5 para outros usos da terra como a sojicultura, contribuindo para a degradação e descaracterização do bioma e do modo de vida de sua população pecuarista tradicional.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul contestou a definição de área consolidada estabelecida pelo Decreto Estadual nº 52.431/2015 em uma ação civil pública6 que ainda está em andamento. Com o apoio de cientistas e ambientalistas [7], o órgão defende na ação que a atividade pecuária sobre campos nativos não provoca a supressão da vegetação nativa, que por sua vez é protegida pelo CF.
Ao contrário, o Pampa engloba um conjunto de ecossistemas com aptidão natural para o pastoreio, e a pecuária extensiva deve ser considerada uma opção de uso sustentável do solo [8] compatível com a conservação do bioma [2] e com as reservas legais. Além disso, a definição de área consolidada do decreto de 2015 do CEMA contradiz a Constituição do Rio Grande do Sul, Art. 251, §1º, XVI, que garante a todos o direito ao meio ambiente equilibrado, e nomeia a preservação do Pampa Gaúcho, incluindo seu patrimônio cultural e biodiversidade, como uma das condições para assegurar esse direito.
Dessa forma, o ponto de partida para reestabelecer a proteção jurídica ao Pampa é a revogação da definição de área consolidada oferecida pela Decreto nº 52.431/2015 e pelo CEMA, que, erroneamente, isenta proprietários da obrigação da RL. Em seguida, é fundamental identificar e corrigir os registros inseridos no Cadastro Ambiental Rural (CAR) que tenham declarado remanescentes de vegetação campestre nativa como áreas de uso consolidado, delimitar novamente as RLs e APPs quando pertinente, e recuperar os campos nativos convertidos irregularmente.
Solução 1.2: Regulamentar a conservação do Pampa.
O CEMA menciona e define, de forma geral, o bioma Pampa (Art. nº 2, XLIV, CEMA), estabelecendo que uma caracterização mais detalhada e aspectos da sua conservação serão definidos por um regulamento específico (Art. nº 203. Lei nº 15.434/2020). A regulamentação será uma oportunidade para a criação de dispositivos que solucionem as omissões do CF na proteção das formações campestres, explicitando que a pecuária é atividade compatível com o regime de RL em campos nativos. Além disso, é necessário detalhar as formas de manejo adequadas da pecuária para a conservação da biodiversidade e provisão de serviços ecossistêmicos. A especificação do manejo (por exemplo, densidade de rebanho, rotação, uso de queimadas prescritas) também deve considerar a diversidade de campos nativos presente no Pampa e o seu estado de conservação.
Desafio 2: Conter o avanço da fronteira agrícola sobre os remanescentes de vegetação nativa.
A pecuária extensiva tem potencial produtivo, mas o manejo inadequado combinado com a alta rentabilidade de usos alternativos influencia a decisão de produtores locais pela conversão dos campos em monoculturas de grãos e silvicultura. Ainda que o CF seja plenamente implementado, a exigência de RL de 20% é insuficiente para uma ambiciosa contenção da perda de vegetação nativa no Pampa. Dessa forma, é necessário criar políticas de incentivo econômico, de ordenamento territorial e de educação ambiental para frear o avanço da fronteira agrícola sobre os campos nativos.
Solução 2: Desenvolver políticas públicas e setoriais de incentivo econômico aos pecuaristas tradicionais.
É preciso desenvolver políticas que valorizem a pecuária tradicional como uma oportunidade para conservação da biodiversidade e para o desenvolvimento sustentável. Concessão de crédito, extensão rural, pagamentos por serviços ambientais e valorização dos produtos de origem certificada no mercado são exemplos de políticas públicas importantes. A formação de associações multissetoriais também é estratégica para fortalecimento da pecuária e a promoção de políticas e instrumentos econômicos. Um exemplo no Pampa é a Alianza del Pastizal7 , iniciativa transnacional que certifica a carne produzida por pecuaristas que voluntariamente adotam práticas de manejo que contribuem para a conservação do bioma [3].
Solução 2.1: Expansão da rede de áreas protegidas do bioma Pampa.
As áreas protegidas do Pampa cobrem 3,3% da área do bioma. Isso corresponde a apenas 0,4% das áreas protegidas do Brasil. A baixa representatividade no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) não condiz com a extensão do bioma no território nacional, e tampouco com o nível de ameaça aos remanescentes de vegetação nativa [4], estando muito abaixo do compromisso firmado com a Convenção sobre Biodiversidade Biológica (CDB) de proteger 17% dos biomas nacionais.
Uma avaliação recente das áreas prioritárias para conservação do bioma [9] indicou que, do total de 88 áreas não protegidas, apenas 26 apresentavam bom estado de conservação, com mais de 70% de cobertura por remanescentes, enquanto outras 19 apresentavam 30% ou menos de remanescentes. Assim, é urgente a expansão da rede de áreas protegidas no Pampa para garantir a proteção dos remanescentes de vegetação nativa, especialmente em áreas prioritárias. Considerando a aptidão natural do bioma para a pecuária, a maior parte dessa expansão poderia ocorrer através da criação de unidades de conservação de uso sustentável, onde a pecuária tradicional possa ser desenvolvida, garantindo a proteção sem necessidade de expropriação das propriedades [10].
Solução 2.2: Promover campanhas de educação ambiental
Por estar restrito no território brasileiro ao estado do Rio Grande do Sul e abranger principalmente formações não florestais, a relevância do patrimônio cultural, ambiental e genético do Pampa é pouco compreendida no Brasil, e no próprio estado. Assim, discussões sobre a conservação de biomas como a Amazônia e a Mata Atlântica ofuscam a urgência das ameaças a que o Pampa está submetido.
É importante desenvolver campanhas de educação ambiental específicas para os diferentes setores da sociedade sobre a importância da conservação do Pampa e do manejo agrícola adequado para a provisão de serviços ambientais, suporte à economia estadual, proteção da biodiversidade e do patrimônio cultural. Nesse contexto, são ações estratégicas a produção de material didático escolar, campanhas de divulgação em canais tradicionais e redes sociais e a produção de materiais com linguagem acessível, embasados cientificamente. Além disso, é fundamental criar mais canais de diálogo entre a academia, sociedade civil organizada, setor privado, Ministério Público, órgãos de governo nos diversos níveis, especialmente no âmbito municipal. As universidades podem estimular esse processo desenvolvendo atividades de extensão e ciência cidadã.
Desafio 3: Promover a agenda de restauração ecológica no Pampa.
Vários municípios do Pampa possuem cobertura de vegetação nativa remanescente insuficiente para a manutenção das funções ecossistêmicas e provisão de serviços ambientais, sendo necessárias ações de restauração [7]. Entretanto, existem alguns gargalos que precisam ser superados para viabilizar a restauração no bioma.
Solução 3: Cumprir as exigências legais de restauração da vegetação nativa.
Apesar da anistia conferida pelo CF de 2012 em relação ao Código Florestal anterior, de 1965, o bioma Pampa ainda tem um déficit de APP de aproximadamente 270 mil hectares [11] que devem ser restaurados em um cenário de cumprimento da lei.
Assim, é importante que o órgão ambiental estadual inicie o Programa de Regularização Ambiental e exija a aderência dos produtores ao CF para fomentar ao menos a restauração mínima prevista na lei.
Solução 3.1: Avançar nas pesquisas e disseminação de conhecimento prático para viabilizar a restauração ecológica.
A restauração de ambientes campestres tem sido negligenciada por políticas e iniciativas de restauração em larga escala. Em âmbito internacional, apenas 8% dos países signatários incluíram metas de restauração de ecossistemas campestres em suas contribuições ao Acordo de Paris. Assim, as pesquisas científicas e métodos desenvolvidos em restauração ecológica estão fortemente concentrados em ecossistemas florestais, havendo significativas lacunas sobre o tema envolvendo ecossistemas campestres [12].
A ecologia da restauração de ambientes campestres do Pampa é complexa, devendo considerar as interações entre a biota e as intervenções de manejo, como o uso do fogo e o pastejo, assim como deve abarcar o legado do antigo e heterogêneo processo de uso e ocupação do bioma.
Dessa forma, é importante direcionar recursos para pesquisas em restauração que resultem em aplicações práticas para o bioma. Por outro lado, é preciso expandir a oferta de cursos de nível superior em restauração ecológica para o Pampa nas universidades e criar cursos técnicos que capacitem a comunidade local e consultores ambientais.
Finalmente, a produção de insumos, a sensibilização da população e dos produtores sobre os benefícios da restauração, a mobilização social, a criação das condições políticas e legais, a criação de mecanismos de incentivo financeiro e o desenvolvimento de um sistema de monitoramento dos resultados também são dimensões da restauração que precisam ser fomentadas para a recuperação da vegetação nativa em larga escala no Pampa [13].
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1 Entre os tipos de campos do Pampa estão o Litorâneo, Arbustivo, Submontana Atlântico, Graminoso, com Areais, Espinilho, Submontano Interior, Solos Rasos e Barba de Bode. A fisionomia dos campos varia intensamente com o tipo de solos e relevo e exige manejo específico de acordo com as suas características, potenciais e fragilidades.
2 A manutenção do balanço hídrico, provisão de água potável, sequestro e armazenamento de carbono terrestre, conservação do solo, polinização, controle de pragas, resiliência contra os efeitos das mudanças climáticas, prevenção à desertificação, e a provisão de alternativas para turismo e lazer, estão entre os principais serviços ambientais que dependem da conservação do Pampa [3].
3 Em 2019, a classe de uso do solo dominante foi a agricultura anual (41%), seguida de formações campestres (31%), formações florestais (incluindo a silvicultura) (13%), e superfícies d’água (10%) [5].
4 Art. nº 5 do Decreto nº 52.431/2015 e Art. nº 2, Inciso III da Lei nº 15.434/2020 (Código Estadual de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul, CEMA).
5 Os artigos nº 218 e nº 219 do CEMA detalham as condições para autorização da conversão dos campos nativos do bioma. Com a dispensa da RL passam a ser necessários apenas o cadastro no CAR e autorização prévia do órgão ambiental estadual.
6 Processo n. 001/1.15.0122787-5 do TJRS.
7 Em 2020, a Alianza del Pastizal cobria 190 mil hectares, em comparação com 25 mil hectares de unidades de conservação de proteção integral no Pampa do RS [3].
Referências bibliográficas
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