Por: Instituto Socioambiental / Carolina Fasolo e Ester Cezar
Estudo do ISA em parceria com a Conaq traz diagnóstico inédito sobre o impacto de obras de infraestrutura, requerimentos minerários e sobreposições de imóveis rurais nos territórios quilombolas
Os Territórios Quilombolas estão entre as áreas mais conservadas no Brasil e são fundamentais no combate às mudanças climáticas. No entanto, levantamento inédito do Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) aponta que 98,2% deles estão ameaçados por obras de infraestrutura, requerimentos minerários e por sobreposições de imóveis particulares.
“Os resultados mostram que praticamente todos os quilombos no Brasil estão impactados por algum vetor de pressão, evidenciando a violação dos direitos territoriais das comunidades quilombolas”, avalia Antonio Oviedo, pesquisador do ISA. “É urgente o cancelamento de cadastros de imóveis rurais e de requerimentos minerários que incidem sobre os quilombos, bem como consulta prévia da comunidade sobre qualquer obra de infraestrutura ou projeto que possa degradar o território ou comprometer os modos de vida dos moradores”, enfatiza.
O estudo traz um diagnóstico sobre o impacto potencial dos três vetores de pressão com base nas sobreposições às áreas tradicionais. Entre os impactos ambientais que afetam os territórios quilombolas estão o desmatamento, a degradação florestal e os incêndios, além da perda de biodiversidade e degradação de recursos hídricos pela exploração mineral e atividades de agricultura e pecuária no entorno dos territórios – facilitadas por obras de infraestrutura como a abertura de estradas e rodovias.
“Estudos mostram que obras de infraestrutura e outros projetos agropecuários e de mineração são planejados, implementados e medidos conforme expectativas setoriais e segundo metas macroeconômicas, mas desconectados das reais demandas sociais locais”, aponta o estudo. “O resultado tende a violações de direitos, perda de oportunidades socioeconômicas e estrangulamento de modos de vida e usos dos recursos naturais. Tais obras e projetos acabam abrindo caminho para mais degradação ambiental e impactos sociais de todo tipo. As rodovias, por exemplo, causam grandes impactos sociais e ambientais, especialmente os projetos que não contemplam medidas de controle do desmatamento”.
O estudo lista ainda os dez territórios mais pressionados pelos três vetores analisados:
Os territórios quilombolas da região Centro-Oeste registram mais da metade (57%) de sua área total afetada por obras de infraestrutura, seguida das regiões Norte (55%), Nordeste e Sul (34%,) e Sudeste (16%). O quilombo Kalunga do Mimoso, em Tocantins, tem 100% de sua área em sobreposição com três empreendimentos planejados, uma rodovia, uma ferrovia e uma hidrelétrica.
Um total de 1.385 requerimentos minerários pressionam 781 mil hectares em territórios quilombolas. O Centro-Oeste também figura como a região em que os quilombos estão mais pressionados por requerimentos minerários, com 35% da área dos territórios afetados, seguido do Sul (25%), Sudeste (21%), Norte (16%) e Nordeste (14%). O território Kalunga, no Goiás, é o mais pressionado, com 180 requerimentos em sobreposição a 66% de sua área.
Mais de 15 mil cadastros de imóveis rurais foram identificados em sobreposição aos territórios quilombolas. As regiões Sul e Centro-Oeste são as mais impactadas, onde 73% e 71% da área dos territórios quilombolas, respectivamente, encontra-se pressionada por imóveis rurais privados.
A região sudeste também apresenta uma alta taxa de sobreposição, de 64%, seguida da região Norte, com 19%. No Pará está o território com a mais alta taxa: Erepecuru, com 95% de sua área em sobreposição a imóveis rurais.
O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um instrumento nacional de registro de imóveis rurais que tem como finalidade integrar informações ambientais de todas as propriedades e posses rurais do país.
A inscrição ocorre junto aos órgãos estaduais de meio ambiente, que devem prover assistência técnica e sistemas eletrônicos adequados para o cadastro em três segmentos: imóveis rurais (CAR-IRU), assentamentos (CAR-AST) e de povos e comunidades tradicionais (CAR-PCT), que é a categoria em que se enquadram os quilombos.
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Os territórios quilombolas ocupam 3,8 milhões de hectares, o que corresponde a 0,5% de todo território nacional, e exercem um papel altamente positivo na conservação ambiental, com mais de 3,4 milhões de hectares de vegetação nativa.
Segundo dados do MapBiomas, em 38 anos os territórios quilombolas perderam apenas 4,7% de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 17% no mesmo período.
“As florestas, a água, os animais e toda forma de vida são cuidados meticulosamente pelos quilombolas, seguindo os ensinamentos ancestrais, pois todas as vidas importam em um quilombo”, explica Francisco Chagas, membro da Conaq.
Para as comunidades quilombolas, ilustra Chagas, “tais elementos são essenciais para a subsistência e a continuidade da vida no planeta. Os micro-organismos naturais do solo cuidam do que a terra necessita, por isso, evitamos a introdução de componentes estranhos ou sintéticos nos territórios, como os agrotóxicos. Como resultado desse compromisso com a preservação ambiental, os territórios sob domínio quilombola são mantidos em estado de conservação”.
Vários estudos têm mostrado que o reconhecimento do direito a reivindicações territoriais por parte de comunidades tradicionais é uma via promissora para a conservação de florestas. No contexto legal e administrativo do Brasil, o direito das comunidades quilombolas permanecerem em seus territórios está previsto na Constituição Federal.
Apesar disso, historicamente, os territórios quilombolas têm enfrentado pressões internas e externas de múltiplas ameaças ambientais, com diferentes níveis de gravidade, que contribuem para a degradação ambiental e reduzem a integridade ambiental desses territórios.
Para Chagas, “As medidas pensadas para proteger e preservar o meio ambiente devem levar em consideração a grande população que depende e cuida desses recursos. Segundo o IBGE, vivem em comunidades quilombolas mais de um milhão e 300 mil pessoas, ou 0,65% da população do país. É essencial consultar estas comunidades para aplicar políticas de forma adequada em seus territórios”.
O poder público tem a obrigação de apoiar a inscrição das propriedades individuais e dos territórios coletivos na modalidade “povos e comunidades tradicionais” do CAR. No entanto, essas populações têm recebido orientações incorretas de empresas terceirizadas ou mesmo dos órgãos estaduais, que têm orientado a inscrição em categorias distintas: de imóvel rural ou assentamentos. Ainda, alguns estados não disponibilizam o sistema para inscrição do CAR de povos e comunidades tradicionais, excluindo as comunidades quilombolas dessa política pública.
“É fundamental promover um amplo debate nacional envolvendo todos os níveis de governo e os povos quilombolas para discutir as práticas de racismo estrutural no Brasil. Os governos precisam reconhecer essa questão e pedir desculpas, pois somente assim será possível resolver os problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas no país”, enfatiza Chagas, da Conaq.
Diante da omissão do Estado, os próprios quilombolas têm se organizado para remediar a situação. No Maranhão, desde 2018, o registro do CAR-PCT em territórios quilombolas é realizado através de articulações entre Organizações Não Governamentais, sindicatos rurais e as comunidades quilombolas.
No Pará, o governo estadual criou a mesa de negociação quilombola, institucionalizando um espaço de diálogo no tema. No Tocantins, as próprias lideranças quilombolas, com apoio da Coordenação Estadual Quilombola (COEQTO), têm realizado trabalhos de sensibilização nas comunidades para a inscrição no CAR-PCT.
“Em estados que não possuem um módulo de cadastro próprio, é importante que utilizem o sistema nacional para que quilombos e outras comunidades tradicionais possam cadastrar seus territórios”, orienta Chagas.
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