“Cerrado de pé! É o que a gente quer!”, entoavam em coro enquanto empunhavam as mãos para cima os participantes do VII Colóquio Internacional de Povos e Comunidades Tradicionais em Montes Claros, Minas Gerais. Ao mesmo tempo, noticiários do restante do Brasil mostravam imagens de queimadas por todo o território brasileiro com dois biomas sob holofote: Amazônia e Cerrado.
Se a Amazônia angariou a atenção nacional e internacional sobre o papel do bioma para o país e o mundo, o Cerrado carece ainda de visibilidade e esforços para contenção da degradação ambiental, cada ano mais alarmantes.
Savana mais biodiversa do mundo, o Cerrado enfrenta um cenário grave de desmatamento e de incêndios florestais, dois fatores agravantes da emissão de gases de efeito estufa e da crise climática vivenciada pelo Brasil e pelo Mundo.
Alguns dias depois do evento, descobriu-se que mais de 135 milhões de toneladas de carbono foram emitidos pelo Cerrado de janeiro de 2023 a julho de 2024.
O volume corresponde a 1,5x vezes o total produzido pela indústria brasileira a cada ano. O levantamento é do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) divulgado na última quarta-feira, 18. Os dados foram obtidos por meio do Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado (SAD Cerrado).
De acordo com dados do Mapbiomas, o Cerrado correspondeu a 61% da área desmatada em todo o país em 2023, enquanto a Amazônia respondeu por 25%.
Dessas emissões, 80% vieram do Matopiba, região de expansão agropecuária que abrange os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Bioma sob alta pressão de desmatamento, o Cerrado é responsável por fornecer água para diversas regiões do país pois é nele que nascem rios de diferentes bacias hidrográficas, como a Amazônica/Tocantins, São Francisco e Prata.
Além disso, desempenha um papel crucial na regulação do clima ao atuar como sumidouro de carbono e influenciar padrões de chuva em outras regiões.
Mesmo com o reconhecimento da importância do bioma e da pressão que vem sofrendo, a lei de proteção da vegetação nativa, conhecida como Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) prevê a obrigatoriedade de apenas 20% da área do imóvel rural como reserva legal, ou seja, área protegida. O índice de proteção da floresta nativa do Cerrado é o percentual mínimo, ou seja, o mais baixo estabelecido pela Lei.
Em áreas de Cerrado localizadas na Amazônia Legal, como Mato Grosso, Maranhão e Tocantins, a obrigatoriedade é de 35%.
Segundo dados do Termômetro do Código Florestal, o Cerrado concentra, ainda, 4,6 milhões de hectares de passivo ambiental em imóveis rurais, somados déficit de reserva legal (RL), com 3,9 milhões, e de áreas de preservação permanente (APPs), com mais de 670 mil.
A fim de conhecer de perto a realidade de alguns dos territórios do bioma com o objetivo de elaborar uma estratégia de atuação da rede, o Observatório do Código Florestal (OCF) realizou uma expedição pelos estados de Goiás, Bahia e Minas Gerais com duração de 12 dias no mês de setembro.
Essa é a primeira reportagem de uma série curta de conteúdos sobre temas e regiões visitados pela equipe do Observatório.
As próximas são:
A Bahia foi o segundo estado brasileiro com a maior taxa de desmatamento em 2023, de acordo com dados do Mapbiomas.
Em Barreiras, no oeste do estado, Observatório organizou um evento na Câmara Municipal a fim de debater situação e estratégias para contenção da degradação do bioma na região, cuja predominância de culturas agrícolas de commodities, como soja e algodão, são parte da realidade local.
Uma das principais questões trazidas pelos participantes foi em relação ao desmatamento legal – ou seja, a supressão de vegetação autorizada pelos órgãos estaduais responsáveis por tal.
Um estudo realizado pelo Imaterra, organização parceira do evento, mostrou um cenário preocupante das Autorizações de Supressão de Vegetação (ASVs) na região ao apresentar um resultado de uma análise de mais de 5 mil ASVs expedidas entre 2007 e 2021.
A análise que resultou na publicação “Desmatamento e Apropriação de Água no Oeste da Bahia” apresentou falhas graves como a concessão de ASVs em áreas de preservação permanente (APPs), categoria de proteção prevista pelo Código Florestal, não declaradas ou declaradas incorretamente.
Na revisão de cartas hidrográficas, constatou-se que muitas dessas áreas de APP não foram reportadas adequadamente e acabaram incluídas na ASV.
Além disso, houve sobreposição entre áreas de ASV e reserva legal, demonstrando mais erros nos pareceres técnicos. Também foram identificadas supressões de vegetação fora das áreas autorizadas, além de divergências entre as informações fornecidas pelo empreendedor, os pareceres técnicos do órgão ambiental e os dados reais da propriedade.
O inventário florestal, que deve mostrar a vegetação, também, em alguns casos da demonstração da análise, demonstrou erros.
“Foi dito que a propriedade não possuía vegetação, o parecer tinha fotos de inspeção mostrando que tinha vegetação, foi verificado por satélites e mesmo assim a autorização foi concedida, sem nenhuma ressalva ou concessão. Não foi solicitado um novo inventário. Isso demonstra uma falha. O parecer do órgão ambiental se contradiz”, comentou Valdenir Barbosa.
De acordo com dados do Mapbiomas apresentados no evento pelo coordenador de políticas públicas do ISPN, Guilherme Eidt, 51% do desmatamento no Cerrado foi autorizado.
“No caso da Bahia, o desmatamento autorizado representa um montante importante e isso é relevante para trabalhar políticas públicas. Combater o desmatamento ilegal não dá conta da perda da vegetação nativa no caso da Bahia. O estado demanda estratégias mais complexas”, afirmou Margareth Maia, especialista e fundadora do Imaterra.
“As dificuldades e restrições para o acesso às portarias de ASV, bem como as limitações dos dados e existência de informações incorretas sinalizam uma reduzida transparência das informações públicas relacionadas às ASVs e comprometem o controle social da gestão florestal do estado”, conclui a análise técnica apresentada.
O cenário foi comentado posteriormente no evento pelo promotor de Justiça Regional Ambiental de Barreiras, Eduardo Bittencourt Filho. “Temos a preocupação com relação ao desmatamento ilegal dividida ou até maior com o desmatamento autorizado”, comentou o promotor, que também criticou as emissões de ASVs por municípios na região.
O estudo do Imaterra também analisou mais de 800 outorgas de uso de recursos hídricos emitidas pelo órgão estadual responsável de 2007 a 2022 e que resultaram na autorizaram a captação de uma vazão total de 17 bilhões de litros de água por dia nas bacias hidrográficas dos rios Grande, Corrente e Carinhanha, todas localizadas na região Oeste.
A vazão total concedida, a fins de comparação, daria para abastecer, diariamente, 7 vezes a população de todo o estado da Bahia.
O estudo mostrou que 50% das outorgas são em áreas com prioridade extremamente alta para conservação e uso sustentável da biodiversidade, 24% estão em áreas prioritárias para uso por povos e comunidades tradicionais e 58% estão em áreas prioritárias para proteção dos recursos hídricos.
O estudo ainda concluiu que “existem fragilidades no processo de concessão e fiscalização de outorgas de domínio estadual, e a maioria dos instrumentos da Política Estadual de Recursos Hídricos (Lei nº 11.612/2009) ainda não foi implementada”, discorre o documento.
Além disso, o trabalho realizou um mapeamento e análise de áreas irrigadas, em propriedades com sistema de agricultura irrigada por pivô central nessas bacias que demonstrou que, além do alto volume outorgado, existe uma quantidade significativa de propriedades que possuem áreas irrigadas por pivôs, mas não possuem outorgas. “O que indica a possibilidade de captações irregulares”, aponta o estudo.
Um levante popular de mais de 10 mil pessoas em 2017 no município de Correntina, na Bahia, em um protesto contra a exploração excessiva da água do rio Arrojado, um afluente do rio Corrente, localizado na região. No protesto, conhecido como “guerra das águas”, foram ocupadas as fazendas Rio Claro e Curitiba, pertencentes a uma empresa produtora de algodão e grãos da região.
A história se repete ano após ano. A água do bioma considerado “berço d’águas” do país tem faltado para quem vive diretamente nele. Antes dos efeitos a nível nacional, as populações têm sentido os impactos do desmatamento.
“O rio é território do pescador”, comentou Fernanda, presidente da Associação dos Pescadores Artesanais do Rio Grande. “O rio que era de acesso e hoje infelizmente a gente não consegue navegar, consequência da redução de nascentes e do desmatamento”, disse.
Para os especialistas da audiência, é preciso “incluir na conta” os efeitos da crise climática agravados pelo desmatamento, que também afetam as safras da produção agrícola, mas atingem de forma severa as comunidades tradicionais e da agricultura familiar da região.
Para Valney Rigonato, professor da Universidade Federal de Barreiras (Ufob), a expansão das atividades agropecuárias na região tem resultado em impactos diretos nas comunidades rurais da região.
“As famílias estão tendo melhores condições de vida nos últimos anos?”, questionou o professor. “Muitas das famílias perderam produção. Setembro e outubro já não chove mais como chovia antes no Cerrado. É o impacto não contabilizado e famílias ficando à mercê do assistencialismo político”, comentou.
“Aparece pela primeira vez, aqui, entre Bahia e Pernambuco, aparecem 5,7 mil km² de clima árido no Brasil. Então, esse aumento de quase 370 mil km² da região semiárida em direção ao Matopiba demonstram já a realidade das mudanças climáticas no território”, diz Gustavo.
Para o especialista, é necessária a realização de cálculos desse impacto climático causado pelo desmatamento, inclusive na judicialização dos casos de degradação ambiental não autorizada.
O diretor de Florestas e Políticas Públicas da BVRio, Beto Mesquita salientou durante e o evento que o Código Florestal não necessariamente “permite” a derrubada de 80% da vegetação nativa em propriedades rurais, mas essa é uma área passível de supressão diante de uma série de requisitos que precisam ser obedecidos, o que não tem sido o caso.
“O desafio para reduzir o desmatamento no Cerrado é diferente da Amazônia. Grande parte dele está dentro do permitido no Código Florestal. Mas não é que o Código Florestal autoriza que se desmate: ele dá a possibilidade, mas para que isso aconteça, uma série de condicionantes precisam ser reconhecidos e respeitados. Não se trata de mudar a lei, mas de efetivamente implementar”, comentou.
De forma concomitante, a Bahia também demonstra uma falta de recuperação do que é obrigatório pela legislação.
Dados do Termômetro do Código Florestal também mostram que o estado possui um passivo ambiental significativo.
São cerca 397 mil hectares de reserva legal (RL) e 167,1 mil hectares de áreas de preservação permanente (APPs) a serem recuperados em imóveis rurais privados, aproximadamente 8 vezes a área do município de Salvador, capital do estado.
O especialista defendeu o avanço na implementação também dos incentivos econômicos tanto para o obrigatório previsto pela lei quanto por excedente de vegetação. “É preciso a cenoura e o chicote. O chicote de comando e controle e a cenoura, que deve incentivar todos a cumprirem com a lei”, comentou. Um, entretanto, não funciona sem o outro.
Pagamentos por serviços ambientais, compensação para medidas de conservação ambiental, incentivos para comercialização, inovação e aceleração são mecanismos previstos pela lei ainda não devidamente regulamentados e implementados, assim como as cotas de reserva ambiental (CRAs) que, apesar de regulamentada, ainda não foram implementadas.
“Para que o incentivo funcione, é preciso que o comando e controle funcione. É a combinação que resolve. Cumprir o obrigatório de reserva legal e APP é pela força da lei e o produtor pode ser ajudado, com incentivos, a fazer isso, mas ele não pode deixar de fazer. E quando você tem excedente, você pode ainda ganhar ainda mais benefícios”, disse.
A plataforma Floresta A Mais, desenvolvida pela BVRio no âmbito do Observatório do Código Florestal, mostra um alto índice de excedente vegetal no Cerrado e na Bahia. São 32,7 milhões de hectares de excedente de vegetação nativa no Cerrado, com mais de 3 milhões na Bahia.
Os valores, entretanto, foram obtidos apenas após a subtração de áreas de CAR sobrepostas a unidades de conservação, terras indígenas, territórios quilombolas e de comunidades tradicionais reconhecidas.
Esse cálculo ainda não é realizado pelos sistemas de dados oficiais e carece de maior qualificação nas bases utilizadas. “Ainda é uma informação que precisa ser qualificada para que isso aconteça da maneira correta”, comentou Beto.
Guilherme também lembrou da decisão de maio de 2024 do STF (Supremo Tribunal Federal), no âmbito da ADPF 743, que determinou que o governo criasse um plano de ação com medidas concretas para o processamento das informações prestadas ao CAR.
A qualificação desse excedente vegetativo depende da análise e validação dos cadastros ambientais rurais (CARs), realizados de forma auto declaratória, e a questão é urgente porque, enquanto isso não ocorre, a própria lei tem sido também usada como forma de exploração desordenada da terra e desapropriação de comunidades tradicionais.
É o processo chamado de “grilagem verde”, quando proprietários ou invasores de terras utilizam a reserva legal autodeclarada em seu CAR como justificativa para legitimar a ocupação ilegal de áreas públicas ou de comunidades.
Dessa forma, esses proprietários alegam que estão protegendo e restaurando essas áreas e cumprindo as exigências do Código Florestal. No caso das ASVs, também realizam desmatamento em áreas não pertencentes ao imóvel.
“A gente não sabe como, mas eles conseguiram fazer uma desmatada de uma área da comunidade dizendo que tem uma liberação legal. A gente não consegue entender como funcionam as leis se a área nem pertence a ele”, comentou Silvanio Pulgas, morador da comunidade rural Arroios de Salu, localizada em Formosa do Rio Preto, município da região.
Povos e comunidades tradicionais, cuja legislação prevê o cadastro por um módulo específico, pouco ou nada aderiram ao registro obrigatório por falta de condições, capacitação e viabilização do procedimento, função dos estados.
Apesar do avanço no cadastramento de imóveis rurais privados, que representam a maior parte do total da Bahia, os assentamentos ainda contam com 861 mil cadastros e territórios de povos e comunidades tradicionais têm apenas 261.
O número de cadastros analisados ainda também é baixo, com apenas 671 dos cadastros com algum nível de análise.
“A implementação do Código Florestal é parte do processo, não todo, do que a gente precisa para proteger o bioma”, afirmou Beto.
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