Contexto
A Amazônia brasileira se estende por 4,2 milhões de quilômetros quadrados e abrange a maior parte da floresta tropical mais extensa do planeta. Sua conservação é fundamental para prover serviços ambientais cruciais para a manutenção da vida e de atividades econômicas dentro e fora dos limites do bioma. Um exemplo importante é a ciclagem de umidade, que alimenta os padrões de chuva nas porções central e meridional da América do Sul, viabilizando a produção de commodities agrícolas, energia, indústrias, e o abastecimento de água dos centros urbanos [1]. Ainda assim, cerca de 20% da cobertura vegetal original da Amazônia já foram desmatados [2] em um processo de ocupação recente (pós-1960) e incentivado pelo Estado brasileiro.
Historicamente, as taxas de desmatamento na Amazônia se mantiveram altas, embora oscilantes até 2004, quando foram estabelecidas políticas públicas coordenadas pelo Programa de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm) [3]. Nesse contexto, diversas ações de planejamento, controle, monitoramento e desenvolvimento sustentável foram importantes para reduzir o desmatamento em ≈80% entre 2004 (27.772 km2) e 2012 (4.571 km2). Entretanto, após 2012, as taxas de desmatamento voltaram a subir, ultrapassando o patamar de 10.000 km2 em 2019 [2]. Diversas causas, combinadas ao recente desmonte das políticas públicas ambientais, explicam a alta do desmatamento. Entre as principais ameaças estão a incapacidade em implementar o Código Florestal (CF) (Lei 12.651/2012) e o caos fundiário característico da Amazônia.
A região amazônica possui ≈50 milhões de hectares de florestas públicas sem destinação de uso [4], o que gera um quadro de insegurança jurídica historicamente associado a conflitos sociais e disputas por terra, além de incentivar o desmatamento para fins de comprovação de posses de terra. Assim, este capítulo discute desafios e soluções para a implementação do CF na Amazônia considerando o contexto de insegurança jurídica que caracteriza a situação fundiária no bioma. A discussão foi baseada em seminário organizado pelo Observatório do Código Florestal (OCF)1.
1 Código Florestal na Amazônia e regularização fundiária www.youtube.com/ObservatórioCódigoFlorestal/
Desafio 1: Conduzir a regularização fundiária com garantia aos interesses coletivos, conservação ambiental e direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais.
A finalidade da regularização fundiária é relevante para as políticas de combate ao desmatamento. Ainda em 2004, com o início da primeira fase do PPCDAm, o componente fundiário já estava presente, sob a ideia de ordenamento territorial. As ações de ordenamento fundiário do PPCDAm incluíram a criação de unidades de conservação e terras indígenas, uma estratégia que reduziu sensivelmente o desmatamento (até 2012) [3].
Entretanto, os últimos governos reduziram o papel da regularização fundiária no ordenamento e planejamento territorial, estando mais associada à mera legitimação de posses. Esse processo se agravou a partir de 2019 com o desmonte das políticas de destinação de usos sustentáveis das terras públicas 2. Isso é problemático, pois, sem um objetivo coletivo conduzido por política pública, a regularização fundiária individual pode intensificar disputas assimétricas por territórios e legitimar injustiças, uma vez que atores sociais mais fortes possuem mais recursos para vencer disputas jurídicas.
2 O últimos Governos Federais, de Jair Bolsonaro e de Michel Temer, não demarcaram nenhuma Terra Indígena, algo inédito desde a redemocratização em 1985.
Solução1.1: Implementar a regularização fundiária como ferramenta de ordenamento territorial.
A destinação das terras devolutas estaduais e federais para a conservação e proteção da etnodiversidade da Amazônia deve ser retomada como política pública. Importante lembrar que essa estratégia tem potencial para reduzir o desmatamento especulativo e a grilagem, e ajudar o Brasil a cumprir os compromissos estabelecidos pela Constituição e, posteriormente, as metas firmadas pela Lei do Clima (Lei 12.187/2009) e pelo Acordo de Paris.
Solução 1.2: Regularizar as ocupações legítimas em terras públicas.
O Estado deve se orientar pela função socioambiental do patrimônio nacional ao privatizar as terras públicas, e priorizar a titulação das pequenas posses como forma de fortalecer a segurança jurídica e a subsistência de agricultores familiares. Nesse contexto, o Programa Terra Legal (Lei 11.952/2009) foi criado no âmbito do PPCDAm com o objetivo de acelerar a regularização fundiária de ocupações informais na Amazônia, com foco na agricultura familiar.
O programa foi criado com a expectativa de que o aumento da segurança jurídica seria convertido em diminuição do desmatamento, pela redução da grilagem e cumprimento da legislação ambiental. O PPCDAm teve vários méritos, como a implantação do Sistema Integrado de Gestão Fundiária (SIGEF). Mas é importante ressaltar que, por si só, a regularização fundiária não foi suficiente para combater o desmatamento, como concluiu estudo recente [6]. Assim, é necessário promover a titulação em conjunto com outras políticas públicas voltadas para o desenvolvimento sustentável e a justiça socioambiental, de forma a viabilizar a permanência e o cumprimento da legislação ambiental pelos pequenos produtores.
Solução 1.3: Coibir o incentivo à grilagem, conduzindo a regularização fundiária com segurança jurídica.
Inicialmente a Lei no 11.952/2009 estabeleceu o ano de 2004 como marco temporal para legitimar as ocupações em terras públicas, prazo máximo que foi estendido para 2008, e depois para ocupações datadas até 2011, com implicações para as condições da regularização (por exemplo, o preço negociado da terra).
Entretanto, o Projeto de Lei nº 2633/2020 abriu brecha (Art. 38, §2) para a licitação de terras públicas ocupadas após o marco temporal definido por lei, o que causou uma situação de insegurança jurídica e expectativa de que ocupações posteriores a 2011 possam ser eventualmente regularizadas, o que poderá estimular o desmatamento para fins de apropriação indevida de terras públicas, gerando mais danos ambientais.
Além disso, a Lei no 11.952/2009 também sofreu outras alterações que ampliaram a insegurança jurídica (o que pode ser agravado pelo Projeto de Lei no 2633/2020), como a ampliação da área mínima passível de ser regularizada sem vistoria, e regras relaxadas para a execução das dívidas que estimulam a inadimplência. Dessa forma, o avanço na regularização fundiária depende da aderência aos marcos jurídicos vigentes, e não de constantes alterações das regras, que incentivam a expectativa de impunidade e mais ocupações irregulares.
Solução 1.4: Não beneficiar infratores ambientais com a titulação.
A lei atual prevê que o titulado poderá perder o imóvel em caso de descumprimento da legislação ambiental ao longo de dez anos contados a partir da titulação. Entretanto, o PL no 2633/2020 prevê que o imóvel que tiver aderido ao Plano de Regularização Ambiental (PRA) ou tiver celebrado Termo de Ajuste de Conduta (TAC) será considerado adimplente com a legislação ambiental, atenuando a punição aos danos ambientais produzidos nas propriedades recém tituladas, o que pode ser um estímulo ao desmatamento e ao não cumprimento do Código Florestal.
Afora toda a discussão da legislação posterior a essas determinações, cabe ainda uma crítica pertinente. A titulação de ocupações irregulares que contrariem as exigências mínimas de Área de Proteção Permanente (APP) e Reserva Legal (RL) – estabelecidas em 1965 – contrariam também a Constituição Federal de 1988, pois esses imóveis deixam de cumprir a função social da propriedade rural (Art. 186). E nesse sentido, a regularização fundiária poderia ser considerada inconstitucional. Dessa forma, cabe questionar a legalidade da regularização fundiária de imóveis descumpridores da legislação ambiental enquanto posses.
Desafio 2: Conduzir a regularização fundiária com celeridade e transparência.
A situação fundiária na Amazônia é complexa, pois há terras públicas federais e estaduais regidas por diferentes institutos de terra e marcos legislativos. Assim, a falta de governança na gestão da informação fundiária é um grande problema, que dificulta a regularização com
transparência.
Solução 2.1: Integrar os cadastros de terras em um único sistema de gestão do território.
É fundamental desenvolver uma ferramenta de gestão integrada baseada em sistemas de informação geográfica, para a administração das terras públicas, e não apenas para o cadastro. Tudo conectado com os Institutos Estaduais de Terra a fim de evitar a situação atual em que diversos cadastros existem simultaneamente com muita justaposição, o que dificulta a avaliação dos conflitos de interesse da destinação, a regularização, a avaliação e a responsabilização por ilícitos ambientais das posses. Através do sistema, seria possível avaliar a extensão do passivo, o que deveria ser, por exemplo, um fator de exclusão da possibilidade de regularização fundiária. Criado em 2013 para automatizar o processo de regularização fundiária, o SIGEF é o instrumento de gestão capaz de centralizar as informações.
Desafio 3: Avançar na implementação do Código Florestal.
A divergência entre os números declarados, como no caso dos imóveis registrados, indica que o Cadastro Ambiental Rural (CAR) demandará extensiva análise e validação. Apesar da ampla extensão territorial cadastrada, a qualidade das informações inseridas é questionável, fruto da pressão vinculada à obrigatoriedade do registro. Assim, a adesão ao PRA pode ser demorada, especialmente para os pequenos proprietários.
Em Rondônia, em torno de 20% (CPI, 2021) [7] dos cadastros inseridos no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (SICAR) estão em tramitação. Além da lentidão na validação do CAR, há uma prevalência de grandes propriedades entre os imóveis com CAR em análise. Essa disparidade reflete a prontidão dos grandes proprietários em aderir ao PRA, devido à sua capacidade técnica instalada, já que muitas vezes os grandes proprietários pagam para fazer o cadastro e iniciar o processo de regularização, inserindo registros com menos falhas técnicas, por exemplo.
Solução 3.1: Avançar na validação do Cadastro Ambiental Rural.
Em resposta a esse panorama, e para acelerar a adesão ao PRA, é importante desenvolver políticas de apoio à regularização ambiental, solicitando celeridade nos pedidos de análise dos pequenos produtores.
Solução 3.2: Utilizar o Cadastro Ambiental Rural como ferramenta de controle do cumprimento da legislação ambiental.
A pessoa que se declara possuidora ou proprietária de um imóvel atrai para si também o ônus de reparar o dano ambiental ali praticado. Dessa forma, a responsabilidade ambiental não é construída apenas com base no título de domínio, mas também na posse autodeclarada. Instrumentos autodeclaratórios de gestão fundiária como o SIGEF, o Cadastro de Imóvel Rural (CIR) e o CAR têm sido utilizados pelos Ministérios Públicos Federal e Estaduais para vincular os declarantes à responsabilidade pelo dano ambiental produzido no seu território. Entre esses instrumentos, o CAR (Art. 29, Lei 12.651/ 2012) ganha destaque pela sua cobertura territorial ampla e definição jurídica, que especifica a sua função de instrumento de controle e combate ao desmatamento, e de cumprimento da lei ambiental.
O CAR é um registro público de âmbito nacional, eletrônico e obrigatório, cuja finalidade é integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais – indicar a localização das RL, APP, áreas de uso restrito, e áreas consolidadas. O CAR compõe uma base de dados para o controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento. Entretanto, o CAR vem sendo avaliado com preocupação pela alegada ineficácia no combate ao desmatamento e por ter sido capturado como ferramenta de grilagem, utilizado em disputas por terra que favorecem injustiças sociais, e que contradizem a função original do cadastro de monitoramento e combate ao desmatamento.
Contudo, é importante destacar que a grilagem é um problema crônico, escorado em diversos instrumentos [6]. Na ausência do CAR, outros caminhos para viabilizar a grilagem seriam utilizados. No lugar de ser abandonado, o CAR deve ser reconhecido como uma ferramenta estratégica para a implementação do CF, e a sua má utilização é rebatida com a implementação de políticas públicas para adequação às legislações ambientais e para a regularização fundiária com fins de ordenamento territorial.
Solução 3.3: Implementar os instrumentos previstos no Código Florestal.
Apesar dos avanços no CAR e da aprovação dos Planos de Regularização Ambiental (PRAs) pela maior parte dos estados da Amazônia, a implementação do CF no bioma ainda depende de várias etapas. Entre elas, a já mencionada validação do CAR, a adesão ao PRA pelos proprietários, o cumprimento dos prazos estabelecidos por leis e normas, além da implementação das ferramentas previstas pelo CF, como o Cotas de Reserva Ambiental (CRA) – que ainda precisam ter o módulo específico implementado pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB) no SICAR.
Referências bibliográficas
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