* Por João de Deus Medeiros, biólogo e Professor Associado da Universidade Federal de Santa Catarina
Como já nos disse Otto Von Bismarck “leis são como salsichas. É melhor não ver como elas são feitas”. Os legisladores catarinenses estão se notabilizando pela produção de projetos de lei que afrontam a Constituição Federal, consolidando uma linha de montagem desastrosa, pois a um só tempo conseguem implementar normas que confundem o administrado e geram sobrecarga à justiça. O caso do PL 0305.4/2013, procedente do Deputado Romildo Titon é exemplar. E mesmo aos vegetarianos é recomendado que prendam o fôlego e vejam como foi feito o dito PL.
Titon foi o relator do Código Ambiental de Santa Catarina (lei nº 14.675/2009), que “inspirou” o debate nacional para a revisão e revogação do “Novo Código Florestal Brasileiro” (lei nº 4.771/65).
A lei catarinense prontamente teve sua constitucionalidade questionada, porém o Supremo Tribunal não encontrou tempo para avaliar a dita arguição de inconstitucionalidade. Em 2013, o mesmo Titon passa a coordenar uma nebulosa equipe responsável pela revisão do Código Ambiental de SC, ajustando a legislação catarinense à nova lei federal nº 12.651/2012, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa. Obscuros salsicheiros foram então contratados de forma pouco republicana para produzir o enchimento do embutido.
Numa tramitação relâmpago, providencialmente conduzida às vésperas das festas natalinas, e com o devido cuidado para não azedar o tempero, a salsicha, digo o PL 0305.4/2013, foi aprovado pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina.
A célere tramitação suprimiu até mesmo a análise de comissões da própria Casa, culminando com uma votação apressada, na qual sequer emendas foram apreciadas. Segundo informação da ALESC, a referida aprovação foi condicionada ao compromisso de discussão dessas emendas no próximo período legislativo.
Influenciado por essa atípica agilidade legislativa, e para não permitir que a iguaria esfriasse, o diligente Governador Raimundo Colombo sanciona a peça no dia 21 de janeiro de 2014, sob o número 16.342, sendo a mesma publicada do Diário Oficial do Estado no dia 22 de janeiro de 2014.
A atitude titoniana, indistinta, aparentemente contraditória e confusa, torna-se compreensível no momento em que identificamos o que torna a lei nacional problemática para Titon e seus colegas parlamentares. Para tanto basta examinar como ele responde a esses problemas através da análise de alguns trechos mais apimentados da lei catarinense:
Já no seu início a norma catarinense reintroduz algumas definições contraditórias com a legislação federal: Área Urbana Consolidada, por exemplo, dispensa a exigência de densidade demográfica superior a 50 habitantes por hectare; Pequena Propriedade ou Posse Rural como imóvel rural com área de até quatro módulos fiscais, diferindo da definição constante da norma geral nacional, qual seja a lei nº 12.651 de 2012. Liberto da materialidade terrena, a noção titoniana de lei permite definir atividade agrossilvipastoril existente e inexistente ou, sendo fiel ao texto legal, realizadas ou “passíveis de serem realizadas”.
Com dificuldade para digerir o conceito de campo de altitude, e avesso a fundamentações técnicas, resolve o problema simplesmente eliminando-o, com a singela remessa da referência da ocorrência de campos de altitude a áreas acima de 1,5 mil metros, o que elimina 99% da área do estado.
Numa inversão de princípios elementares de justiça, a lei de Titon prevê o compartilhamento dos custos necessários à implantação das medidas de regularização com toda a coletividade, por meio de linhas de financiamento específicas, utilização de fundos públicos para concessão de créditos
reembolsáveis e não reembolsáveis, incentivos fiscais, programas de pagamento por serviços ambientais, entre outros instrumentos. Inaugura assim o princípio do poluidor-recebedor.
Repetindo texto de lei federal, cria um segundo Cadastro Ambiental Rural, retirando dele o caráter nacional, ainda que, para aumentar a confusão, permite que “para a implantação do CAR no âmbito de Santa Catarina, o Poder Público estadual poderá adotar o sistema disponibilizado pela União, sem prejuízo de promover as adequações necessárias às peculiaridades regionais”.
O regime e limites de Áreas de Preservação Permanente estabelecidos na legislação federal, problema recorrente a grande parte dos parlamentares catarinenses, encontra na lógica titoniana solução salomônica: as APPs poderão ser modificadas em situações específicas, desde que estudos técnicos justifiquem a adoção de novos parâmetros. Liquida assim a competência constitucional da União para estabelecer normas gerais.
Insubordinado ao melhor estilo nietzschiano, ignora regras e prazos da legislação nacional (os quais, por sinal, já expirados) para a regularização de atividades rurais em APPs, para acrescentar também atividades industriais. E contraditoriamente determina medidas de faixas de proteção para em seguida dizer que as mesmas poderão ser modificadas no âmbito do PRA, em razão das peculiaridades territoriais, climáticas, históricas, culturais, econômicas e sociais da região onde está situado o imóvel a ser regularizado, mediante recomendação técnica.
Mostrando nova insubordinação à Constituição Federal a lei catarinense induz legisladores municipais a grave erro, pois permite aos municípios, através do Plano Diretor ou de legislação específica, delimitar as áreas urbanas consolidadas em seus respectivos territórios, disciplinando os requisitos para o uso e ocupação do solo e estabelecendo os parâmetros e metragens de APPs a serem observados em tais locais. Em ato de pura rebeldia reconhece ainda “o direito adquirido relativo à manutenção, uso e ocupação de construções preexistentes a 22 de julho de 2008 em áreas urbanas, inclusive o acesso a essas acessões e benfeitorias, independentemente da observância dos parâmetros indicados no art. 120-B, desde que não estejam em área que ofereça risco à vida ou à integridade física das pessoas”; assim como permite “realocação da Reserva Legal existente no imóvel para outra área”.
A linha de montagem desastrosa continua instituindo o que já instituído foi, caso da Cota de Reserva Ambiental, a CRA, título nominativo representativo de área com vegetação nativa, existente ou em processo de recuperação.
Numa verdadeira alforria ao principio da legalidade, o texto diz que poderão “integrar o SEUC, Unidades de Conservação estaduais ou municipais que não possam ser satisfatoriamente atendidas por nenhuma categoria prevista na Lei federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000”.
Com a deliberada supressão de competências remetidas aos demais poderes, o legislativo catarinense aprimora o viés kafkiano da norma, determinando de maneira taxativa que “as Unidades de Conservação somente poderão ser criadas por intermédio de lei e sua efetiva implantação somente ocorrerá se estiverem previamente inseridas no orçamento do estado recursos especificamente destinados às desapropriações e indenização decorrentes de sua implementação”. Seguindo no plano do absurdo diz ainda que deverá haver a “indicação da existência dos recursos financeiros necessários às indenizações, inclusive no que concerne à zona de amortecimento, quando for o caso”.
Não seria o caso de remeter os parlamentares catarinenses ao confessionário, já que juraram respeito a Constituição, ou pelo menos a uma temporada de alfabetização legislativa? A propósito, necessário frisar que, diferente da produção legislativa, salsichas catarinenses são de excelente qualidade.
Como já nos disse Otto Von Bismarck “leis são como salsichas. É melhor não ver como elas são feitas”. Os legisladores catarinenses estão se notabilizando pela produção de projetos de leis que afrontam a Constituição Federal, consolidando uma linha de montagem desastrosa, pois a um só tempo conseguem implementar normas que confundem o administrado e geram sobrecarga à justiça. O caso do PL 0305.4/2013, procedente do Deputado Romildo Titon é exemplar. E mesmo aos vegetarianos é recomendado que prendam o fôlego e vejam como foi feito o dito PL.
Titon foi o relator do Código Ambiental de Santa Catarina (lei nº 14.675/2009), que “inspirou” o debate nacional para a revisão e revogação do “Novo Código Florestal Brasileiro” (lei nº 4.771/65).
A lei catarinense prontamente teve sua constitucionalidade questionada, porém o Supremo Tribunal não encontrou tempo para avaliar a dita arguição de inconstitucionalidade. Em 2013, o mesmo Titon passa a coordenar uma nebulosa equipe responsável pela revisão do Código Ambiental de SC, ajustando a legislação catarinense à nova lei federal nº 12.651/2012, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa. Obscuros salsicheiros foram então contratados de forma pouco republicana para produzir o enchimento do embutido.
Numa tramitação relâmpago, providencialmente conduzida às vésperas das festas natalinas, e com o devido cuidado para não azedar o tempero, a salsicha, digo o PL 0305.4/2013, foi aprovado pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina.
A célere tramitação suprimiu até mesmo a análise de comissões da própria Casa, culminando com uma votação apressada, na qual sequer emendas foram apreciadas. Segundo informação da ALESC, a referida aprovação foi condicionada ao compromisso de discussão dessas emendas no próximo período legislativo.
Influenciado por essa atípica agilidade legislativa, e para não permitir que a iguaria esfriasse, o diligente Governador Raimundo Colombo sanciona a peça no dia 21 de janeiro de 2014, sob o número 16.342, sendo a mesma publicada do Diário Oficial do Estado no dia 22 de janeiro de 2014.
A atitude titoniana, indistinta, aparentemente contraditória e confusa, torna-se compreensível no momento em que identificamos o que torna a lei nacional problemática para Titon e seus colegas parlamentares. Para tanto basta examinar como ele responde a esses problemas através da análise de alguns trechos mais apimentados da lei catarinense:
Já no seu início a norma catarinense reintroduz algumas definições contraditórias com a legislação federal: Área Urbana Consolidada, por exemplo, dispensa a exigência de densidade demográfica superior a 50 habitantes por hectare; Pequena Propriedade ou Posse Rural como imóvel rural com área de até quatro módulos fiscais, diferindo da definição constante da norma geral nacional, qual seja a lei nº 12.651 de 2012. Liberto da materialidade terrena, a noção titoniana de lei permite definir atividade agrossilvipastoril existente e inexistente ou, sendo fiel ao texto legal, realizadas ou “passíveis de serem realizadas”.
Com dificuldade para digerir o conceito de campo de altitude, e avesso a fundamentações técnicas, resolve o problema simplesmente eliminando-o, com a singela remessa da referência da ocorrência de campos de altitude a áreas acima de 1,5 mil metros, o que elimina 99% da área do estado.
Numa inversão de princípios elementares de justiça, a lei de Titon prevê o compartilhamento dos custos necessários à implantação das medidas de regularização com toda a coletividade, por meio de linhas de financiamento específicas, utilização de fundos públicos para concessão de créditos
reembolsáveis e não reembolsáveis, incentivos fiscais, programas de pagamento por serviços ambientais, entre outros instrumentos. Inaugura assim o princípio do poluidor-recebedor.
Repetindo texto de lei federal, cria um segundo Cadastro Ambiental Rural, retirando dele o caráter nacional, ainda que, para aumentar a confusão, permite que “para a implantação do CAR no âmbito de Santa Catarina, o Poder Público estadual poderá adotar o sistema disponibilizado pela União, sem prejuízo de promover as adequações necessárias às peculiaridades regionais”.
O regime e limites de Áreas de Preservação Permanente estabelecidos na legislação federal, problema recorrente a grande parte dos parlamentares catarinenses, encontra na lógica titoniana solução salomônica: as APPs poderão ser modificadas em situações específicas, desde que estudos técnicos justifiquem a adoção de novos parâmetros. Liquida assim a competência constitucional da União para estabelecer normas gerais.
Insubordinado ao melhor estilo nietzschiano, ignora regras e prazos da legislação nacional (os quais, por sinal, já expirados) para a regularização de atividades rurais em APPs, para acrescentar também atividades industriais. E contraditoriamente determina medidas de faixas de proteção para em seguida dizer que as mesmas poderão ser modificadas no âmbito do PRA, em razão das peculiaridades territoriais, climáticas, históricas, culturais, econômicas e sociais da região onde está situado o imóvel a ser regularizado, mediante recomendação técnica.
Mostrando nova insubordinação à Constituição Federal a lei catarinense induz legisladores municipais a grave erro, pois permite aos municípios, através do Plano Diretor ou de legislação específica, delimitar as áreas urbanas consolidadas em seus respectivos territórios, disciplinando os requisitos para o uso e ocupação do solo e estabelecendo os parâmetros e metragens de APPs a serem observados em tais locais. Em ato de pura rebeldia reconhece ainda “o direito adquirido relativo à manutenção, uso e ocupação de construções preexistentes a 22 de julho de 2008 em áreas urbanas, inclusive o acesso a essas acessões e benfeitorias, independentemente da observância dos parâmetros indicados no art. 120-B, desde que não estejam em área que ofereça risco à vida ou à integridade física das pessoas”; assim como permite “realocação da Reserva Legal existente no imóvel para outra área”.
A linha de montagem desastrosa continua instituindo o que já instituído foi, caso da Cota de Reserva Ambiental, a CRA, título nominativo representativo de área com vegetação nativa, existente ou em processo de recuperação.
Numa verdadeira alforria ao principio da legalidade, o texto diz que poderão “integrar o SEUC, Unidades de Conservação estaduais ou municipais que não possam ser satisfatoriamente atendidas por nenhuma categoria prevista na Lei federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000”.
Com a deliberada supressão de competências remetidas aos demais poderes, o legislativo catarinense aprimora o viés kafkiano da norma, determinando de maneira taxativa que “as Unidades de Conservação somente poderão ser criadas por intermédio de lei e sua efetiva implantação somente ocorrerá se estiverem previamente inseridas no orçamento do estado recursos especificamente destinados às desapropriações e indenização decorrentes de sua implementação”. Seguindo no plano do absurdo diz ainda que deverá haver a “indicação da existência dos recursos financeiros necessários às indenizações, inclusive no que concerne à zona de amortecimento, quando for o caso”.
Não seria o caso de remeter os parlamentares catarinenses ao confessionário, já que juraram respeito a Constituição, ou pelo menos a uma temporada de alfabetização legislativa? A propósito, necessário frisar que, diferente da produção legislativa, salsichas catarinenses são de excelente qualidade.
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