Eles sempre viveram em harmonia com a natureza, conhecem os segredos da floresta, de onde tiram o seu sustento. Mas há algumas décadas, na esteira do avanço do desmatamento, sua permanência nestes locais vem sendo ameaçada. E sem os seus “guardiões” as matas
nativas ficam ainda mais vulneráveis, bem como os “desgarrados”. Políticas públicas, engajamento da juventude, titulação dos territórios
são elementos fundamentais para garantir a resistência e existência destas populações, conforme os participantes da mesa “Ocupação,
resistência e permanência dos povos e comunidades tradicionais nas florestas”.
Mediado pela bióloga Andréia Pinto, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o debate abordou o desafio do enraizamento. “O objetivo é justamente mostrar a diversidade dos territórios coletivos e das comunidades tradicionais rurais brasileiras, além de debater os desafios, dar visibilidade à temática e evidenciar o papel desses territórios e comunidades na implementação do Código Florestal como instrumento de conservação, de enfrentamento da crise ambiental”, afirmou. Também participaram do evento Raimunda Monteiro, professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), Maria Teresa Vieira, quilombola e coletora de sementes, Fernando Prioste, do Instituto Socioambiental (ISA), e José Tosato, da Secretaria de Desenvolvimento Rural da Bahia.
Valorizar o extrativismo para evitar o “desterro”
Aromas, resinas, bebidas, oleaginosas, fibras, látex, peles de peixes. A valorização das diversas riquezas extraídas da floresta poderia contribuir para a permanência dos povos e comunidades tradicionais nos seus territórios. Afinal, para eles, fazer as malas e deixar a floresta para trás é sinônimo de desterro, um exílio que vem acompanhado de um sabor amargo. De acordo com Raimunda Monteiro, professora da
Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), apesar da mudança ser motivada, muitas vezes, pela expectativa de um futuro melhor, estas populações acabam por enfrentar a falta de acolhimento, e o retorno torna-se incerto.
O êxodo, bem como a vulnerabilidade social, a influência dos especuladores, as divisões internas, o apagão de políticas públicas e as economias dependentes de recursos de rápido retorno são fatores que, segundo ela, ameaçam a permanência dos PCTs nas florestas. Atualmente, existem cerca de 3,6 mil assentamentos rurais na Amazônia. São pescadores artesanais, quilombolas, agricultores familiares
espalhados por 42 milhões de hectares. Conforme Raimunda, que é pós-doutora em Ciências Sociais, trata-se de uma população bastante significativa, enraizada na Amazônia e que detém conhecimento sobre bens da natureza, como frutos de usos diversos, a exemplo do piquiá-amazônico, o qual, além de nutritivo, pode ser usado desde a fabricação de sabão até o tingimento de roupas.
E o desafio de garantir que estes povos tenham condições de continuar nos seus territórios não será superado sem que o aspecto econômico seja contemplado, culminando em um projeto de desenvolvimento local, baseado nas estruturas produtivas tradicionais. “É um fator que contribui de forma estrutural para gestão sustentável de todo o bioma com qualidade de vida para suas populações”, avaliou.
Para Raimunda, a permanência está atrelada à compreensão do extrativismo como base para a produção de alimentos saudáveis e para a transição industrial ecológica. Nesse sentido, a estratégia levaria em conta a especialização e diversificação, considerando floresta, pesca, pecuária sustentável e agricultura sustentável. “Com a produção em pequena escala familiar e comunitária, abastecimento de mercados locais e venda organizada de excedentes como ponto de partida para a expansão desses sistemas econômicos novos, diferenciados, desafiadores, mas que, sem eles, não há permanência dessas populações no horizonte”, pontuou.
Titulação dos territórios e o racismo ambiental
Foram 350 anos de escravidão no Brasil até a abolição, em 1888, “formal e inconclusa”. Segundo Fernando Prioste, do Instituto Socioambiental (ISA), apesar do regime escravocrata ter sido superado, a exploração do trabalho de pessoas negras e quilombolas continua
acontecendo. “Além de formal, ela foi inconclusa porque a essas comunidades quilombolas não foi reconhecido nenhum direito, nem à terra nem nada. Estiveram à própria sorte”, disse.
Seriam necessários que se passassem 100 anos até a Constituição de 1988 assegurar às comunidades quilombolas o direito à propriedade de suas terras. Entretanto, dos mais de 6 mil territórios quilombolas existentes no país, somente cerca de 340 foram titulados nestas últimas três décadas. Prioste lembrou que, nesse ritmo, levaria mil anos para que a titulação completa. “A permanência dessas comunidades nos
territórios depende da titulação, não é a única, mas é a principal ferramenta”, afirmou, destacando que a demora é fruto da pressão do agronegócio.
Educador e advogado popular, Prioste citou estudos sobre papel dos povos e comunidades tradicionais na preservação ambiental, e avaliou que, embora tais territórios sejam áreas ambientalmente protegidas, não são tratados como tal nas políticas públicas. “Se a finalidade do Código Florestal é a preservação ambiental, a regeneração, e está provado do ponto de vista técnico-científico que os territórios e comunidades tradicionais são as melhores áreas de preservação, conservação e recuperação, é preciso titular esses territórios para que o Código seja aplicado na prática”, frisou.
Além dos impasses na titulação, a sobreposição dos Cadastros Ambientais Rurais (CARs), que acabam impedindo o acesso ao financiamento agrícola é, na avaliação do advogado, uma injustiça que pode ser classificada como um “racismo ambiental”. “De um lado, as comunidades quilombolas são as que mais preservam: por ter um modo de vida e manejo do território específico, conservam mais do que as unidades
de conservação, mais do que os imóveis privados do entorno e, ao mesmo tempo, têm menos apoio para a implementação da política central do Código Florestal, que é a inscrição dos territórios no CAR.”
Filhos da terra
É da terra que a quilombola Maria Teresa Vieira tira o sustento para ela e seus três filhos. Agricultora e coletora de sementes, ela conta com orgulho que a filha mais velha, que cresceu no Quilombo Nhunguara, no Vale da Ribeira, em São Paulo, está no último ano do curso de Biologia. Uma escolha que, provavelmente, não se deu por acaso. Afinal, é o entusiasmo que dá o tom à fala da mãe sobre a relação ancestral das comunidades quilombolas de respeito com a natureza. “Eles (os quilombolas) aprenderam como preservar, sem destruir, construindo nas suas próprias roças, plantando tudo o que tinham necessidade. (…) A gente sabe que área usar, onde estão as nascentes, que os topos dos morros não se podem derrubar”, contou.
Maria Teresa contou que a sua comunidade sempre plantou para a própria subsistência, mas que, com o tempo, percebeu que poderia comercializar o excedente. Assim, há dez anos nasceu a cooperativa, que abrange 17 bairros quilombolas e conta com mais de 200 famílias cadastradas – 140 das quais chefiadas por mulheres. Em 2021, os quilombos realizaram a doação de mais de 350 mil toneladas de alimentos, beneficiando 23 mil famílias da periferia de São Paulo, que enfrentavam dificuldades devido à crise provocada pela pandemia.
Ela também compartilhou a experiência com a rede de sementes no Vale da Ribeira, a partir de um intercâmbio com a Sementes do Xingu, no Mato Grosso. Com 5 anos de existência, a iniciativa comercializou 1.500 kg de sementes em 2021, contribuindo, principalmente,
para o empoderamento das mulheres e o envolvimento de jovens. Para Maria Teresa, o rendimento extra com as sementes se traduz em uma oportunidade de garantir a continuidade dos filhos na terra: “Com a oportunidade que a gente está tendo, eles podem ter uma melhora financeira dentro da comunidade, sem precisar sair. Porque muitos saem pela dificuldade e acabam voltando. Até se reorganizar de novo,
é tempo perdido. Então, acho que esse trabalho que estamos tendo é motivo de segurar eles na terra e ter uma vida tranquila”, disse.
A importância da decisão política
Da Bahia, um exemplo de como as lideranças precisam ir além dos seus discursos. O agrônomo José Augusto Tosato, da Secretaria de Desenvolvimento Rural da Bahia, contou que, com a criação da pasta, em 2015, houve uma decisão política e um ambiente propício para ampliação das políticas públicas de desenvolvimento rural para a agricultura familiar e povos e comunidades tradicionais. Até 2021,
foram investidos R$ 2,1 bilhões em ações de inclusão produtiva e sustentabilidade, as quais, segundo ele, “contribuem muito para a relação harmônica dessas comunidades com o meio ambiente”.
Com 417 municípios, a Bahia possui 27 territórios de identidade e quase 75% da população vivendo em áreas urbanas. Mas à primeira vista os números podem enganar: Tosato destacou que há um forte apelo de ruralidade, pois quase 90% da população vive em municípios com até
50 mil habitantes. “Para que se fortaleça a agricultura familiar como um todo, é preciso que haja melhores condições de vida sempre”, disse ele, admitindo que, embora esse fortalecimento seja “prioridade inequívoca”, o investimento não dá conta de tudo, por haver “muitas vulnerabilidades”.
Ele apresentou uma série de ações e programas da secretaria, como o Pró-Semiárido, que atende 60 mil pessoas e visa contribuir para a redução da pobreza rural de forma duradoura. Outro destaque foi um edital lançado em 2019 e que está em fase de implantação dos projetos.
Conforme Tosato, o edital 14/2019, voltado para as comunidades tradicionais, traduziu a aposta de que “a conservação pode ser uma grande indutora da inclusão social, do desenvolvimento nos territórios e pode, então, mudar a vida das pessoas”. Foram aprovados 99 projetos
de 15 territórios, nas áreas de de turismo de base comunitária, transição agroecológica, recuperação de áreas degradadas e produtos da sociobiodiversidade.
Painelistas
Andréia Pinto – Gestão Ambiental / Imazon (Moderação)
Dra. Raimunda Monteiro – Professora / Ufopa
Maria Tereza Vieira – Quilombola, Agricultura e Coletora de Sementes
Fernando Prioste – Educador e Advogado Popular / ISA
José Augusto de Castro Tosato – Especialista em gestão de estratégia pública / Secretária de Desenvolvimento Rural da Bahia
Assista ao debate na íntegra:
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