Contexto
A Mata Atlântica se estendia originalmente sobre 1,5 milhão de km2 , sobrepondo-se total ou parcialmente a 17 estados do país. A história da ocupação da Mata Atlântica se confunde com a dos principais ciclos econômicos desde o início da colonização – da exploração madeireira à mineração, do café à industrialização. Assim, atualmente, restam apenas 12% da cobertura vegetal original1 [2], distribuídos de forma heterogênea pelo bioma. O alto grau de ameaça, combinado com a vasta riqueza e endemismo de espécies da fauna e flora conferem à Mata Atlântica o status de hotspot de biodiversidade [3]. Apesar da fragmentação e degradação avançadas, a conservação dos remanescentes de Mata Atlântica é fundamental para a salvaguarda da biodiversidade e para a provisão de serviços ecossistêmicos dos quais dependem cerca de 70% da população brasileira que habita o bioma. Entre esses serviços estão a prevenção a desastres, como inundações ou deslizamentos, mitigação e adaptação às mudanças climáticas, abastecimento hídrico, segurança energética e alimentar, e geração de renda.
Desde 1988, quando a Constituição Federal (Art. nº 225 §4) conferiu à Mata Atlântica o status de patrimônio nacional, foram criados regramentos para garantir a proteção do bioma. Entre estes, a Lei da Mata Atlântica2 (LMA) (Lei nº 11.428/2006) é a legislação específica que regulamenta a proteção das vegetações primárias e secundárias remanescentes do bioma. O longo processo de articulação social envolvendo a criação da LMA e a sua publicação em 2006 foram decisivos para o forte declínio das taxas anuais médias de desmatamento na Mata Atlântica, de 100 mil para 14 mil hectares entre 1990 e 2011. Entretanto, a partir de 2012, as taxas voltaram a subir, possivelmente em resposta à aprovação da revisão do Código Florestal (CF) (Lei nº 12.651/2012) que anistiou grande parte dos déficits de floresta em Área de Proteção Permanente (APP) e Reserva Legal (RL) em propriedades rurais [2,4].
Um novo aumento do desmatamento em 2019 [2] ressaltou o grande risco a que a vegetação da Mata Atlântica continua submetida. Entre as principais ameaças estão o desmatamento pela expansão agropecuária e imobiliária, a continuada degradação da floresta remanescente devido ao processo de secundarização e ao corte seletivo ilegal, a degradação dos ecossistemas de restinga e dos campos naturais e os ataques à legislação protetiva e políticas públicas. Dessa forma, o presente documento discute desafios e soluções para as principais ameaças ao bioma e para a implementação dos instrumentos legais vigentes, com base em seminários organizados pelo Observatório do Código Florestal3 e outras referências.
Desafio 1: Implementar e salvaguardar as legislações em vigor, em especial o Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica.
Cinquenta por cento dos alertas de desmatamento na Mata Atlântica a partir de 2018 foram em APPs, e 90% do total de alertas foram ilegais. Esses números ressaltam a urgência na implementação das legislações protetivas em vigor no bioma, em especial do CF e da LMA, o que ainda não ocorreu de maneira efetiva por falta de vontade política e ataques às normas e legislação.
O CF de 2012 anistiou parte do desmatamento ocorrido em áreas rurais consolidadas em APPs ocupadas até julho de 2008. A anistia concedida restringiu a obrigatoriedade da restauração do passivo em APPs, a depender do tamanho do imóvel.
Por outro lado, a LMA instituiu a proteção das vegetações primárias e secundárias nas áreas de aplicação da lei. Em seu artigo 5º, a LMA definiu que tais remanescentes não perderão o status de vegetação a ser protegida nos termos da lei no caso de intervenções não autorizadas, o que significa que remanescentes desmatados ilegalmente deverão ser recuperados.
O marco temporal implícito que estabelece o início da vigência da proteção pela LMA é 1990, data da publicação do primeiro decreto vedando o desmatamento na Mata Atlântica (Decreto nº 99.547/1990). Apesar desse decreto e de outros posteriores terem sido revogados em favor do decreto regulamentador da LMA (Decreto nº 6.660/2008), a proteção que eles conferem às vegetações remanescentes permanece. Assim, essas áreas desmatadas irregularmente a partir de 1990 devem ser recuperadas, inclusive em APPs.
Nesse contexto, em despacho recente (Despacho nº 410/2020/MMA), o Ministério do Meio Ambiente (MMA) acolheu um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) defendendo a aplicabilidade dos artigos 61a e 61b do CF de 2012, que regulam a aplicação do conceito de área rural consolidada em APPs, nas áreas de aplicação da LMA.
Após forte mobilização da sociedade civil organizada, o despacho foi revogado pelo MMA. Ainda assim, a AGU ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para julgamento da prevalência dos artigos do CF em detrimento da LMA. A ratificação da área rural consolidada em APPs da Mata Atlântica resultaria na anistia de desmatamentos ocorridos entre 1990 e 2008, anularia embargos e desobrigaria o restauro de áreas degradadas.
Portanto, a ação da AGU criou um conflito entre as duas leis. A questão é crítica, pois as APPs protegem as áreas sensíveis, como matas ciliares e encostas, que são fundamentais para a segurança hídrica e integridade humana. Além disso, o ataque à LMA pode enviar um sinal aos proprietários rurais de enfraquecimento dos mecanismos de proteção à Mata Atlântica, levando a um aumento do desmatamento ou à expectativa pela consolidação de outros desmatamentos ilegais além daqueles em APP.
Solução 1.1: Resolver o conflito jurídico criado entre a Lei da Mata Atlântica e o Código Florestal
A solução do desafio criado por este conflito se encontra nos seguintes pontos:
— Defesa da prevalência da LMA com base no próprio ordenamento jurídico, como defendido pelos Ministérios Públicos Federal e Estaduais e sociedade civil organizada. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto nº 4.657/1942) estabelece que uma lei posterior geral, não pode revogar ou não pode ter aplicação prevalente sobre uma lei anterior e especial, exceto se esta última tiver sido revogada. A LMA é uma lei especial, e a exteriorização de um comando da Constituição Federal de 1988, que confere à Mata Atlântica status de Patrimônio Nacional. Em seu artigo primeiro, a LMA prevê complementariedade com outras legislações, em especial com o CF.
Por outro lado, o primeiro artigo do CF de 2012 clarifica que esse trata de normas gerais sobre a proteção da vegetação nativa no Brasil, indicando que outras legislações específicas, como a LMA, incidem em conjunto. Fica claro, então, que nas áreas de incidência da LMA, a LMA prevalecerá sobre a lei geral, ou o CF4.
— Produção de conhecimento científico sobre os impactos do reconhecimento de áreas consolidadas em APPs na Mata Atlântica para embasar decisões jurídicas e sensibilizar a população.
Um estudo conduzido pela iniciativa MapBiomas sobrepôs mapas anuais de mudança de uso do solo (entre 1990 e 2018) com a localização das APPs em propriedades sujeitas à LMA [5]. Os resultados identificaram 329,7 mil hectares desmatados ente 1990 e 2018 em APPs localizadas em áreas de incidência da LMA, e que devem ser recuperadas. Desses, apenas 42 mil hectares se encontravam com ocupação agrícola em 2018 (0,1% do total da atividade agropecuária do bioma). Além disso, as propriedades afetadas somam apenas 0,4% do total de imóveis rurais da Mata Atlântica. Os números demonstram que a ADI beneficiaria um número reduzido de proprietários, com impacto econômico bastante inferior ao especulado5 pelo setor ruralista favorável à ADI, mas com importantes prejuízos socioambientais.
Os resultados identificaram 329,7 mil hectares desmatados ente 1990 e 2018.
— Mobilização social: A sociedade civil organizada desempenha o importante papel de sensibilização sobre a importância do tema e suas implicações. A mobilização social também pode ir além e questionar junto às cortes os atos praticados pelo poder público ou atores privados que sejam prejudiciais ao direito fundamental ao ambiente ecologicamente equilibrado. Em um exemplo prático, seis ONGs6 utilizaram o instrumento legal Amicus Curiae reunindo argumentos técnicos e jurídicos para solicitar ao STF que rejeite a ADI, visando evitar a consolidação de desmatamentos ilegais na Mata Atlântica.
Solução 1.2: Implementação do Código Florestal (Lei 12.651/2012)
Apesar da anistia conferida a desmatamentos irregulares, o CF estabelece requerimentos e métricas para conservação e restauração, além de prever instrumentos econômicos e políticas públicas para sua aplicação. Pelo regramento do CF de 2012, a Mata Atlântica concentra um passivo de vegetação nativa de 6 milhões de hectares,dos quais ≈1,5 de hectares milhão ocorremem APPs e são de recuperação obrigatória (Soares-Filho et al. 2014). O cumprimento do CF pode gerar oportunidades econômicas e de conservação adicional (por exemplo, através da implementação das Cotas de Reserva Ambiental), estimular uma economia verde (agroextrativismo em reservas legais restauradas, produção de insumos para restauração) e ajudar o país a cumprir as metas nacionais e os acordos internacionais de conservação e restauração dos quais é signatário [6].
Entretanto, a implementação do CF ainda envolve várias etapas, como a finalização e validação do CAR (Cadastro Ambiental Rural), regulamentação e implementação dos Programas de Regularização Ambiental estaduais e adesão pelos proprietários inadimplentes. Finalmente, o cumprimento do CF e da LMA dependem também da intensificação das ações de monitoramento, fiscalização, e dos instrumentos previstos pelas leis, como do Programa de Apoio e Incentivo a Conservação do Meio Ambiente (Art. 41 do CF de 2012), que ainda não foi implementado.
Desafio 2: Engajar os municípios na proteção e recuperação de áreas degradadas na Mata Atlântica.
Os desafios para a conservação na Mata Atlântica estão distribuídos de maneira heterogênea pelo bioma. Enquanto alguns municípios concentram maior cobertura vegetal, 23% possuem menos de 10% de habitat remanescente, valor muito abaixo do limiar de extinção de 30% sugerido pela literatura para o bioma [7]. Outra estatística revela que apenas 100 municípios concentraram 70% do desmatamento ocorrido no bioma entre 2018 e 20197 . Dessa forma, a conservação da Mata Atlântica demanda a implementação de estratégias específicas para problemas locais.
Solução 2.1: Estimular o desenvolvimento dos Planos Municipais de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica (PMMA)
A LMA instituiu o Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica (PMMA) (Art. nº 38 da Lei 11.428/2006), um instrumento de gestão ainda pouco explorado8 e que permite aos municípios direcionarem a implementação da LMA para a realidade local. O PMNA prevê o estabelecimento de prioridades locais de conservação (que podem inclusive orientar processos de licenciamento ambiental) e de restauração da vegetação, ações preventivas, educação ambiental e capacitação. A escala local também é ideal para o estímulo à gestão ambiental com participação social, podendo estimular o diálogo ente poder Executivo, sociedade e academia para o estabelecimento de parcerias público-privadas que podem incentivar as ações previstas pelos planos. Finalmente, o PMNA também é uma oportunidade para articular a escala local com as agendas nacionais e globais de mudanças climáticas, conservação e restauração.
Desafio 3: Proteger os ecossistemas vulneráveis
Os campos de altitude, as restingas e os manguezais são ecossistemas mais vulneráveis às pressões antrópicas devido a dificuldades no monitoramento, falta de vontade política na sua proteção e constantes ataques às suas normativas específicas por parte de setores da sociedade, por vezes em associação ao poder público.
A Mata Atlântica possui flora e fauna ricas e adaptadas a campos naturais e de altitude, ambientes que contribuem para a ciclagem da água e outros serviços ecossistêmicos importantes. Entretanto, apesar de a LMA regular o uso da terra em áreas de campos naturais e de altitude, dependendo do estado da vegetação (sucessão) (Resolução do CONAMA, nº 423/2010), a conversão acelerada de campos nativos do bioma é preocupante. Esses processos podem ser atribuídos a dificuldade de monitoramento e detecção das mudanças, à dificuldade da população em diferenciar campos nativos de pastagens, ao baixo valor atribuído a essas áreas pela sociedade em geral – especialmente em comparação a florestas, o que facilita o uso irregular por produtores.
Além disso, boa parte dos campos naturais perdeu uma camada legal de proteção com a alteração dos critérios de classificação das áreas de APP pelo CF de 2012, que reduziu a área de topos de morro protegidas em 90%.
As restingas e manguezais não existem apenas na Mata Atlântica, mas são essenciais para o combate à erosão que atinge 60% da costa e para a adaptação e mitigação dos impactos das mudanças climáticas, como o avanço do nível do mar. Esses ecossistemas que sofrem muita pressão por conversão pelo setor imobiliário, são protegidos pelo CF, pela LMA, e pela lei que institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (Lei nº 7.661/1988), entre outras normas e resoluções em todos os níveis de governo.
Recentemente, resoluções que garantiam proteções especiais às restingas9, entre elas o estabelecimento de uma faixa protetora de 300 metros, foram revogadas pelo CONAMA sob pretexto de prevalência do regramento disposto pelo CF, fragilizando tais ecossistemas. Após mobilização social a decisão foi revertida pelo STF, mas ilustra o regime de instabilidade jurídica a que os instrumentos de proteção às vegetações costeiras estão submetidos.
Solução 3.1: Aprimorar os instrumentos de proteção aos campos de altitude.
Entre as soluções para esse desafio estão a capacitação dos agentes de fiscalização e aprimoramento dos sistemas de monitoramento. Finalmente, a sociedade civil mobilizada, em parceria com a academia e Ministérios Públicos deve pressionar o poder público pelo cumprimento da LMA nas áreas de campos nativos remanescentes e pela restauração ecológica daqueles em uso irregular.
Solução 3.2: Assegurar a implementação dos instrumentos de proteção aos ambientes de restingas e manguezais.
As soluções devem passar pela salvaguarda de todos os instrumentos de proteção complementares ao CF, bem como a continuada mobilização social embasada na ciência e no interesse público. Além disso, a implementação dos planos de gerenciamento costeiro estaduais e municipais também pode estabelecer áreas prioritárias de conservação das restingas.
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1 Doze porcento em bom estado de conservação. Caso sejam incluídas as vegetações em estágio inicial, médio e avançado de regeneração, a cobertura de vegetação nativa chega a 27%.
2 Antes da Lei da Mata Atlântica vigoraram os Decretos nº 99.547/1990 e nº 750/1993.
3 O Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica youtube.com/c/ObservatórioCódigoFlorestal/
4 O Pacto pela Restauração da Mata Atlântica publicou um quadro comparativo entre o CF e a LMA (https:// drive.google.com/file/d/157j6R3Bcc5KApKXwkiSv0m4AN-4GYti-/view)
5 https://fpagropecuaria.org.br/resumos-executivos/ proposicoes-legislativas/despacho-4-410-2020- mma/
6 https://apremavi.org.br/ongs-ambientais-vao-ao-stfcontra-desmonte-na-lei-da-mata-atlantica/
7 Webinar Temático MapBiomas (2020) – Revelando o uso da terra na Mata Atlântica com ciência e transparência. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=IGCVoMRPbD0
8 Apenas 40 municípios (de 3.429) têm PNMA elaborado, 37 destes em implantação. Outros 157 municípios estão em fase de elaboração dos planos. Informações disponíveis em: https://pmma.etc.br/ observatorio/
Referências
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