Proposta de retirada do Mato Grosso da Amazônia Legal traz prejuízos ao Brasil em benefício de poucos
Análise do Projeto de Lei nº 337/2022
Observatório do Código Florestal [1]
Foi apresentado à Câmara do Deputados o Projeto de Lei nº 337/2022, que exclui o estado de Mato Grosso do rol dos estados inseridos na definição de Amazônia Legal, disposta no art. 3º, inciso I, da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012 [2], principal norma de proteção da vegetação nativa e uso do solo no Brasil, conhecida como Código Florestal.
Como consequência, os imóveis rurais localizados no estado passariam a ser obrigados a manter apenas 20% de sua área como Reserva Legal [3], protegendo a vegetação natural ou manejando-a de forma sustentável. Atualmente, esse percentual varia entre 80, 35 ou 20, caso se encontrem regiões de floresta, cerrado ou campos gerais, sendo que quase totalidade da produção agrícola do estado se encontra no Cerrado. Sua aprovação implicaria em uma liberação de, no mínimo, 10 milhões de hectares (MHa) para o desmatamento e reduziria em torno de 3,3 MHa a área a ilegalmente desmatada que teria que ser restaurada por ter sido desmatada ilegalmente, segundo cálculos realizados com base em premissas técnicas e metodologia pactuado no Comitê Técnico do Observatório do Código Florestal e em Nota Técnica formulada por pesquisadores da UFMG [4].
Como consequência, os imóveis rurais localizados no estado passariam a ser obrigados a manter apenas 20% de sua área como Reserva Legal, protegendo a vegetação natural ou manejando-a de forma sustentável. Atualmente, esse percentual varia entre 80, 35 ou 20, caso se encontrem regiões de floresta, cerrado ou campos gerais, sendo que quase totalidade da produção agrícola do estado se encontra no Cerrado.
A região atualmente denominada “Amazônia Legal” [5], foi definida em 1953, com foco no desenvolvimento econômico da região e transferência de recursos federais. Já o Código Florestal de 1965 obrigava a manutenção de 50% da cobertura florestal da parte Norte da região Centro-Oeste. Com a Medida Provisória 2166/2001 a área de reserva legal no bioma cerrado mato-grossense foi reduzida de 50 para 35% enquanto no bioma Amazônia aumentou para 80% de modo a reduzir o desmatamento na região.
O Projeto de Lei parte de pressupostos totalmente equivocados, os quais precisam ser explicitados. Segundo consta da justificativa da proposta, a redução das áreas protegidas seria necessária porque “com o crescimento da população mundial e consequente aumento da demanda nacional e internacional por alimentos, se faz necessário uma expansão das áreas de produção em áreas de fronteira agrícola”. Para o autor da proposta, a autorização para mais desmatamento no estado seria benéfica à economia nacional porque “nesta região é possível realizar duas ou até três safras por ano”.
Ocorre que esse pressuposto está absolutamente equivocado. É verdade que atualmente a produtividade agrícola da região é alta porque é possível colher até duas safras de grãos, mas isso ocorre justamente porque ainda há floresta preservada suficiente para garantir as chuvas que permitem essas duas safras. O aumento do desmatamento permitido por esse projeto iria justamente afetar a oferta desse serviço ambiental, diminuindo os volumes e alterando a regularidade das chuvas na região. A Nota Técnica formulada pelos pesquisadores da UFMG calcula que as perdas agrícolas das áreas atualmente sob uso agropecuário no Estado seriam da ordem de US $ 2,7 bilhões ao ano. Em resumo, o aumento do desmatamento não implicaria em maior produção agrícola e ganho econômico – pelo contrário, geraria perdas em áreas já consolidadas e prejuízos de grande monta.
Mesmo que não houvesse qualquer impacto sobre o regime de chuvas e a própria produtividade agrícola, ainda assim não há qualquer necessidade de se autorizar mais desmatamento para que haja aumento da produção agrícola no estado ou no país. Apenas na Amazônia há atualmente cerca de 20 milhões de hectares de áreas já desmatadas, que estão ocupadas por pastagens severa ou medianamente degradadas e que, com tecnologia já disponível, podem ser utilizadas para agricultura. Isso representa quase duas vezes mais área do que se pretende “ganhar” para uso agrícola.
Percebe-se, portanto, que não há razoabilidade na proposta apresentada, dado que ela representa não só prejuízo ambiental, mas também econômico ao país. Ela aponta para um ilusório ganho individual, do produtor rural que poderia expandir sua área de produção agrícola, mas entrega na realidade um imenso prejuízo público, para todos os produtores e para o país.
A legislação atual já é bastante flexível para acomodar as situações de agricultura consolidada no estado de Mato Grosso, de forma que, ao contrário do que alega o autor da proposta, atualmente poucos imóveis rurais precisam ter 80% de Reserva Legal. Segundo estudo realizado por Heron Martins [6] que avaliou os imóveis inscritos no CAR em 2018, dos mais de 42 mil imóveis analisados, apenas 7.521 devem atualmente manter a Reserva Legal de 80%, no estado de Mato Grosso. Isso demonstra que o universo de beneficiados com o Projeto de Lei, no Bioma Amazônia, é muito pequeno, frente ao prejuízo que oferece a toda a sociedade.
Ademais, a aprovação do projeto representaria uma quebra dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no combate às mudanças climáticas, as quais afetarão sobretudo a produção agrícola nacional. Durante a Conferência do Clima das Nações Unidas da ONU, em Glasgow – COP 26, o governo brasileiro apresentou uma nova meta de redução de 50% das emissões dos gases associados ao efeito estufa até 2030 e a neutralização das emissões de carbono até 2050. Para tanto, se comprometeu a reduzir o desmatamento, principal fonte de emissões brasileiras, e acelerar a restauração da vegetação nativa, plantando 12 milhões de hectares até 2030. O projeto, como visto, implicará num aumento no desmatamento nesse período e numa diminuição na necessidade de restauração em mais de 3 MHa, o que representa ¼ da meta brasileira.
Por tudo isso, o Projeto de Lei representa uma afronta à Constituição da República, que garante a todos os brasileiros o direito a um ambiente equilibrado, que permita um desenvolvimento econômico sustentável e saudável. O dever do proprietário ou possuidor privado de conservação da vegetação nativa em percentual dos imóveis rurais confere eficácia horizontal ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cumprindo com a dever de manter a função socioambiental da propriedade especificada nos incisos XXII e XXIII do art. 5º, bem como no art. 170 da Carta Magna, que estabelece entre os princípios da ordem econômica função social da propriedade (inciso III) e “a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação” (inciso VI).
Segundo o Ministro do STJ Herman Benjamin [7], a Reserva Legal é “espaço de proteção da flora nativa, e não exclusivamente de floresta nativa, e possui dois blocos de objetivos ecológicos: o uso sustentável dos recursos naturais e a conservação e reabilitação dos processos ecológicos essenciais e da biodiversidade, consubstanciando o preceito constitucional expresso no art. art. 225, caput e § 1°, I, da Constituição da República de 1988. Para o Ministro:
“[A] Reserva Legal, nos termos da legislação vigente, carrega uma marcante finalidade ecológica, um inequívoco progresso jurídico-axiológico, quando se coteja o instituto com sua modesta e pouca ambiciosa origem, no quadro do Código Florestal de 1934; transformação que, sem dúvida, harmoniza-se com o evoluir das bases ético-sociais do País ao longo da segunda metade do Século XX, consolidado na Constituição de 1988. Daí a necessidade de que a área esteja coberta com vegetação nativa para que cumpra, real e não retórica ou cosmeticamente, os objetivos exprimidos pelo legislador.
Além de representarem a concretização de preceitos constitucionais, os contornos atuais da Reserva Legal devem ser mantidos sob pena de infringência ao princípio da vedação de retrocesso na proteção ambiental. Como visto, a redução do percentual de Reserva Legal nos imóveis rurais do estado de Mato Grosso levarão a um aumento no desmatamento, o que por sua vez levará ao aumento da temperatura global e jogará a floresta amazônica, considerada por nossa Carta Magna como Patrimônio Nacional (art.225, § 4°) muito próximo ao ponto de não retorno, a partir do qual ela entrará irremediavelmente num processo de perda de umidade e degradação florestal, deixando de ser a mais rica e biodiversa floresta do Planeta, e também a fonte dos rios voadores que irrigam grande parte da agricultura brasileira e leva água para a casa de milhões de brasileiras. Isso é evidentemente um imenso retrocesso no grau de implementação e concretização do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado.
Sobre o tema, em julgamento no STF, Luiz Fux (2018) [8] destaca que “[o] foco no crescimento econômico, sem a devida preocupação ecológica, consiste em ameaça presente e futura para o progresso das nações e até mesmo para a sobrevivência da própria espécie humana. O homem apenas progride como ser biológico e como coletividade, quando se percebe como produto e não como proprietário do próprio meio ambiente”.
Por fim, cabe lembrar que o aumento nos já atualmente altos índices de desmatamento traria também, de forma mais imediata, problemas nas relações comerciais com a União Europeia, Reino Unido e Estados Unidos. Um recente estudo publicado na Science, liderado por pesquisadores da UFMG, mostrou que cerca de 20% das exportações provindas do Cerrado e da Amazônia para a União Europeia estão ligadas ao desmatamento ilegal e os pesquisadores alertam para a pressão internacional [9]. Recentemente, em novembro de 2021, a União Europeia publicou uma proposta de regulamentação dos produtos livres de desmatamento que visa minimizar o risco de desmatamento e degradação florestal, associado a produtos colocados no mercado europeu. Esse movimento tem crescido no mundo inteiro, pois os consumidores europeus, americanos, japoneses e de outros países não querem ser sócios da destruição de florestas tropicais no Brasil ou em qualquer outra parte do planeta.
Por essas razões, o Observatório do Código Florestal recomenda o arquivamento do Projeto de Lei em análise.
[1] Nota Técnica elaborada por Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, Centro de Inteligência Territorial – CIT/Lagesa, Instituto Centro de Vida – ICV, Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia – Ipam, Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola – Imaflora, Instituto Socioambiental – ISA e WWF-Brasi, membros do Observatório do Código Florestal, sob a coordenação de sua secretaria executiva.
[2] “Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por:
I – Amazônia Legal: os Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e as regiões situadas ao norte do paralelo 13º S, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao oeste do meridiano de 44º W, do Estado do Maranhão;”
[3] A Reserva Legal é uma parcela do imóvel rural, cujo tamanho varia conforme o bioma em que ele se localiza, na qual deve ser conservada a vegetação nativa, permitidos, no entanto, usos econômicos que não descaracterizem a área (como manejo sustentável de produtos florestais madeireiros ou não madeireiros). Sua função é manter o equilíbrio ecológico regional, oferecendo abrigo para espécies da fauna e flora ao mesmo tempo em que regula o ciclo da água e do carbono.
[4] NUNES, Felipe; RAJÃO, Raoni; LEITE-FILHO, Argemiro; SOARES-FILHO, Britaldo; e OLIVEIRA, Amanda. Nota Técnica: Estimativas de ativos e passivos florestais vigentes no estado do Mato Grosso e impactos resultantes do Projeto de Lei 337/2022. Centro de Sensoriamento Remoto, Laboratório de gestão de Serviços Ambientais – Lagesa, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Março, 2022.
[5] A expressão “Amazônia Legal” surgiu, com base no art. 199 da Constituição brasileira de 1946, que estabelecia o plano de valorização econômica da Amazônia, com objetivo de desenvolver economicamente a região. Nos termos da Lei nº 1.806, de 6 de janeiro de 1953, que regulamentava o plano, esse se constituía de “um sistema de medidas, serviços, empreendimentos e obras, destinados a incrementar o desenvolvimento da produção extrativa e agrícola pecuária, mineral, industrial e o das relações de troca, no sentido de melhores padrões sociais de vida e bem-estar econômico das populações da região e da expansão da riqueza do País”. A região abrangida pela Amazônia brasileira, referida pela norma, compreendia os “Estados do Pará e do Amazonas, pelos territórios federais do Acre, Amapá, Guaporé e Rio Branco e ainda, a parte do Estado de Mato Grosso a norte do paralelo de 16º, a do Estado de Goiás a norte do paralelo de 13º e a do Maranhão a oeste do meridiano de 44º”. A expressão “Amazônia Legal” começa a ter contornos ambientais com a criação do Programa de Defesa do Complexo de Ecossistemas da Amazônia Legal, denominado Programa Nossa Natureza, pelo Decreto nº 96.944, de 12 de outubro de 1988, com a finalidade de “estabelecer condições para a utilização e a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais renováveis na Amazônia Legal, mediante a concentração de esforços de todos os órgãos governamentais e a cooperação dos demais segmentos da sociedade com atuação na preservação do meio ambiente”. Embora o Código Florestal já dedicasse especificações pormenorizadas à região Norte e parte Norte da região Centro-Oeste, desde sua versão de 1965 (Lei nº 4.771), a expressão “Amazônia Legal” somente foi trazida para o texto da Lei em 2000, pela Medida Provisória nº 1956-50, de 26 de maio de 2000.
[6] ESTEVES, Bernardo; ALMEIDA, Rodolfo. Reserva Legal, uma ilusão amazônica. Questões Ambientais. Revista Piauí. Fevereiro, 2021. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/reserva-legal-uma-ilusao-amazonica/
[7] Superior Tribunal de Justiça (STJ). Embargos de Divergência em RESP nº 218.781 – PR. (2002/0146843-9). Relator: Ministro Herman Benjamin. DJe: 23/02/2012.
[8] Supremo Tribunal Federal – STF. Ação Declaratória de Constitucionalidade 42 – Distrito Federal, Plenário, Ministro Luiz Fux, julgado em 28 de fevereiro de 2018.
[9] RAJÃO, R; SOARES-FILHO, B; NUNES, F; BÖRNER, J; MACHADO, L; ASSIS, D; OLIVEIRA, A; PINTO, L; RIBEIRO, V; RAUSCH, L; GIBBS, H; FIGUEIRA, D. The rotten apples of Brazil’s agribusiness. Science, 17 Jul 2020: Vol. 369, Issue 6501, pp. 246-248. DOI: 10.1126/science.aba6646
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