*Por Simone Milach – simone.milach@observatorioflorestal.org.br
FILHA DE AGRICULTORES TRADICIONAIS DO VALE DO GUAPORÉ E HOJE COORDENADORA DO PROGRAMA DE DIREITOS SOCIOAMBIENTAIS DO INSTITUTO CENTRO DE VIDA, DERONÍ MENDES FALA SOBRE CONEXÕES NATURAIS E DIVISÕES SOCIAIS.
Quem é Deroni de Fátima Leite Mendes?
Sou filha do seu Germano e da Dona Benedita, agricultores tradicionais do Vale do Guaporé, cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, no Mato Grosso. Vila Bela é a primeira capital de Mato Grosso e a primeira cidade planejada do Brasil, fundada pela coroa portuguesa para assegurar que os espanhóis não povoassem o local.
A minha cidade fica na fronteira com a Bolívia e é muito pequena, com cerca de 17 mil habitantes. Por um lado, tem uma grande pobreza, por outro também tem um enorme rebanho bovino. Em 2020, tinha o sexto rebanho do Brasil e o primeiro do Mato Grosso, o que indica a desigualdade na distribuição de renda.
Sou da cidade de Tereza de Benguela, e quem nasceu em Vila Bela, se é negra, se é mulher, é uma herdeira de Tereza de Benguela. Aos 11 anos fui para cidade para estudar e aos 23 anos mudei de cidade para fazer faculdade. Entrei nesse meio socioambiental, e em 2006 me mudei para Cuiabá, onde estou até hoje. Sou uma mulher que sempre quis conhecer como é que funciona esse sistema da estrutura social e que nunca desistiu de lutar para trazer um pouco de benefício, de melhoria de qualidade de vida, para minha família principalmente. Eu nunca deixei de olhar qual é o papel da população negra na cidade de Vila Bela, qual o ramo que elas ocupam e principalmente qual é o papel da mulher negra nessa sociedade.
“QUEM NASCEU EM VILA BELA, SE E NEGRA, SE É MULHER, É UMA HERDEIRA DE TEREZA DE BENGUELA.”
Mapa português de Vila Bela da Santíssima Trindade, primeira capital da Capitania de Mato Grosso.
O que que te fez despertar para esse mundo socioambiental, a sua formação foi relacionada ao meio ambiente?
“EU FIZ GEOGRAFIA, HOJE EU FALO QUE FOI A MELHOR ESCOLHA, MAS NÃO FOI A MINHA ESCOLHA, FOI O QUE SOBROU, O QUE DEU SE EU TIVESSE ESCOLHA NAQUELA ÉPOCA EU FARIA DIREITO, MAS AS MINHAS CONDIÇÕES SOCIAIS E ECONOMICAS NÃO PERMITIAM.”
Eu sempre quis fazer direito para defender as coisas com base no que estava escrito e que ninguém poderia descontruir.
Mas Vila Bela é muito pequena e não tem faculdade. O lugar mais perto é Cáceres, que fica a cerca de 300 km. Lá tinha faculdade de direito, mas o curso era no período da manhã e eu precisava trabalhar. A gente é de família muito pobre, então eu tinha que ir para lá, arrumar um lugar para ficar e trabalhar.
Pude fazer geografia, porque era a noite. Eu gosto da geografia humana e da geografia agrária, porque eu sou da zona rural e porque eu vejo que questões como o uso da terra é o que move o mundo nas relações sociais, culturais e econômicas.
Eu fui para esse meio socioambiental quando eu comecei a trabalhar, durante a faculdade, na Fase – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional. Eu estava em uma loja, em um trabalho análogo a escravidão, quando o coordenador da Fase me tirou de lá para trabalhar na biblioteca da ONG e foi lá que eu fui cada vez mais compreendendo o contexto das populações rurais, o contexto em que eu vivia e em que a minha família vive.
Você sempre viveu num meio rural, só que você não tinha essa perspectiva que a geografia te deu. Hoje, qual a sua visão, enquanto mulher afro-latina-americana, sobre a proteção florestal?
Eu estava pensando hoje sobre isso, sobre o papel das mulheres em todo e qualquer sistema, em toda e qualquer cultura. Eu costumo dizer que as mulheres são as guardiãs do clima e das florestas. Embora sejam os homens que pescam, que caçam e que fazem a roça, são as mulheres que observam os comportamentos e que fazem a comida. As comunidades afro têm um misticismo muito próximo das comunidades indígenas, tudo tem um porquê. A geografia me trouxe um novo olhar, mas eu sempre defendo que o conhecimento científico que a gente aprende na academia, não é melhor nem pior do que o que a gente aprende na vivência, ele pode ser complementar.
“ÀS VEZES, DIFÍCIL É CONCILIAR. NEM QUEM ESTÁ NO SÍTIO OU NEM QUEM ESTÁ NA ACADEMIA, QUER ESVAZIAR SUA XÍCARA. TODO MUNDO ESTÁ CHEIO DA SUA OPINIÃO, DO SEU CONHECIMENTO, DA SUA EXPERTISE. E AS VEZES, ISSO NÃO TRAZ BONS FRUTOS.”
Você agora trabalha no Instituto Centro de Vida (ICV). O que você está fazendo lá?
Eu trabalhei no ICV de 2007 a 2009 e depois retornei em 2012. Eu concorri a um edital de assistente de projetos lá e eu fui chamada para uma entrevista. Minha filha estava com 3 meses de idade. Nem as creches aceitavam crianças desta idade e eles me contratara mesmo assim. Eu iniciei o trabalho em uma área administrativa, mas no final de 2019 eu assumi a coordenação compartilhada do programa de direitos socioambientais. Esse programa nasce das emergências que assola os grupos em situação de vulnerabilidade social econômica, ambiental, que é uma vulnerabilidade estrutural e histórica. O objetivo do programa e fortalecer esses grupos do ponto de vista social, político, cultural e econômico. Não é falar por eles, mas é entender qual é a prioridade e como que faz a voz deles ir mais longe. Como é que a gente contribui para que eles consigam dialogar de forma mais efetiva, nos diferentes espaços, para que os produtos deles cheguem mais longe, enfim, como é que a gente constrói soluções compartilhadas com esses grupos. Nosso foco é o estado de Mato Grosso, onde as vulnerabilidades já são gigantescas.
Vocês estão acompanhando a implementação do Código Florestal nos territórios dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs)?
No caso da implementação do Código Florestal para povos e comunidades tradicionais, a gente começou a acompanhar ainda na época do governo anterior (governo Dilma), quando ainda estavam sendo discutidas as premissas da regularização ambiental para os territórios deles, tendo em vista que são em sua maioria coletiva e têm também as suas especificidades. Como fazer a regularização ambiental dos pescadores, dos geraizeiros, das quebradeiras de cocos? São diferentes desafios dessa implementação que é muito complexa. Acho que vai demandar um grande esforço da sociedade civil, desses grupos e dos governos.
Você vê algum avanço para esses povos, após 9 anos da Lei?
O que a gente percebe é que houve uma mobilização e hoje esse diálogo diminuiu.
Esses diálogos, em função da implementação do Código Florestal, precisam ser retomados. Eu acredito que, no estado de Mato Grosso, há uma possibilidade da retomada, pois está acontecendo uma ativação do comitê estadual de povos e comunidades tradicionais. Algumas das lideranças desse comitê são pessoas que já acompanhavam a discussão sobre o CAR. Eu acredito que toda essa bagagem, que eles acumularam na discussão nacional, vai ser bem-vinda para o estado.
Na visão das comunidades locais, com as quais você cresceu e convive, existe uma preocupação com o Código Florestal? Você acha que a nova Lei impactou essas comunidades e nas suas formas de produz ir e comercializar ou nada mudou?
Tem casos e casos. As comunidades tradicionais se enquadram nos critérios da agricultura familiar para o acesso a crédito, por exemplo. A concessão de crédito já era um impacto já apontado pelos próprios PCTS, pois eles teriam que apresentar o recibo do CAR, o que já exclui um pouco essa possibilidade do acesso a crédito.
Mas outra questão a se considerar é que muitos desses grupos nunca acessaram esses créditos, então eles não têm muito claro para que serve e quais os benefícios de fato de se ter o CAR. A minha família, por exemplo, nunca acessou a PRONAF, que seria o que eles precisariam de um recibo do CAR.
Então, a questão do CAR é meio que “faz porque tem que fazer”. A gente fez o CAR porque tinha um prazo, apareceu no jornal que todo mundo que tinha propriedade tinha que fazer. A minha família procurou um escritório, levou os documentos e fez a CAR.
“IGUAL A MINHA FAMÍLIA, MUITOS FIZERAM A MESMA COISA, PORQUE ESTÁ NA LEI ENTÃO TEM QUE FAZER. OS PEQUENOS PAGAM O ITR, TODOS OS ENCARGOS, VACINAM SENS BOIS. SABE QUE TEM QUE FAZER, VAI LÁ E FAZ, PAGA PARA FAZER E SE PRECISAR DO DOCUMENTO, ESTÁ NA LEI.”
Agora para que que serve de fato, se com esse documento aqui eu consigo algum outro benefício social, ou econômico, ou algum apoio de assistência técnica, isso inexiste para muitos.
Quais são as suas principais preocupações em relação à proteção florestal e ao cumprimento do Código Florestal?
Às vezes é complicado perceber o impacto sinérgico das coisas. Não adianta a gente respeitar a reserva legal, não desmatar e ficar ilhado. Não adianta a gente cuidar de um lado pois se o outro não cuidar, a seca severa ou a inundação também vão chegar aqui. A natureza não tem castas.
Uma outra questão que a gente precisa levar em consideração é a necessidade dessas comunidades, a vulnerabilidade social e econômica. Por exemplo, meu pai tem 84 anos e está com Alzheimer, com Parkinson, ele já não anda. A gente não faz mais roça há um bom tempo, para manter ele e com a aposentadoria da minha mãe, são muitos remédios e essas necessidades são urgentes. O que a gente vai fazer? Vamos criar boi. Porque é o imediato. Nessas comunidades a gente tem que observar as necessidades sociais, o quanto essas comunidades estão desassistidas do poder público. Essas pessoas precisam comer, tem os animais, tem a família para alimentar, tem o remédio, tem a energia, tudo custa dinheiro. Vamos criar boi, vamos construir pasto. Por que onde que a gente vai ter assistência técnica gratuita para tornar o nosso quintal produtivo? Têm todas essas questões.
Qual a sua perspectiva de futuro? O que você vê para as comunidades nos próximos anos?
O meu sonho é ver essas comunidades tradicionais, que eu não tenho nenhuma dúvida de que são de fato os guardiões da floresta, conseguindo produzir pelo menos o suficiente para a sua segurança alimentar e nutricional. E ver os produtos da sociobiodiversidade sendo valorizados no mercado. É ver os fazeres das comunidades tradicionais como uma verdadeira fonte de sustento.
Meu sonho é que de fato o óleo de babaçu, que o meu irmão produz, que ele leva na garrafa pet para vender sob encomenda na cidade, seja vendido por um preço justo, que ele consiga colocar um rótulo no produto, que a gente consiga ter uma banquinha. Cada comunidade é um tesouro, ela é um ecossistema social, político, económico, que tem a sua forma própria de se organizar. E que essa organização se torne uma possibilidade para eles continuarem a ser o que são.
“PARECE QUE A GENTE TEM QUE PERDER A NOSSA IDENTIDADE CULTURAL PARA A GENTE MELHORAR DE VIDA, PARA A GENTE TER UMA VIDA DIGNA”
Caber na caixinha do colonizador para a gente seguir em frente, ser respeitado, valorizado. O meu sonho é que a gente não precise disso. Cada um é cada um, cada cultura, cada fazer, cada forma de organizar è importante e tem o seu lugar.
Eu consegui positivar quem eu sou, de onde eu vim, mas nem todo mundo consegue, inclusive da minha própria família, o ser negro, ser da zona rural. É legal também para eles verem que a gente tem a nossa importância. Para quem está 365 dias por ano aqui, não é fácil. Não é fácil quando você chega no mercado, quando você vai no posto, quando você vai na prefeitura. É muito diferente do que eu, que moro em Cuiabá e chego aqui, é outro tratamento. O meu sonho é que não precise ser assim.
“ESSAS COISAS MOSTRAM COMO ESSAS COMUNIDADES SÃO NEGLIGENCIADAS E INVISIBILIZADAS INTENCIONALMENTE.”
Quanto menos se souber quem somos, onde estamos e como fazemos, melhor. Melhor para quem não nos quer igual.
Leia mais:
Quem foi Tereza de Benguela
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