*Antônio Donato Nobre
Para introduzir este artigo, relato uma singular vivência que tive em meados de 2011 com estudantes de agronomia na UNEMAT em Nova Xavantina, nordeste do estado de Mato Grosso. Era uma semana científica, fui lá a convite da professora Vanessa Theodoro para apresentar minhas visões sobre desenvolvimento no campo, o papel da floresta no ciclo da água, a importância disso tudo para a agricultura e a controvérsia em torno do Código Florestal que ainda crepitava. Durante os debates, uma professora de biologia comentou sobre o ridículo de certas placas afixadas nas porteiras de fazendas na região: Proibido caçar e pescar.“ – “Ora”, exaltou-se, “caçar e pescar o que se os próprios fazendeiros acabaram com tudo?” Ao desabafo da professora seguiu-se uma sonora vaia dos alunos, a maior parte filhos de agricultores e pecuaristas.
Vi naquele pequeno conflito um microcosmo da controvérsia sobre o código florestal que engolfara a sociedade. Vi também uma oportunidade para explorar caminhos do diálogo. Ocorreu-me contar a historia daquele rei da antiguidade que não gostava de receber notícias ruins, mandando matar todo mensageiro portador de más novas; e de como o seu reinado durou pouco tempo. Perguntei aos alunos se eles, ali na zona rural, também não gostavam de más noticias, se desejariam que a mensagem da professora de biologia não lhes chegasse, que ela morresse (!).
Depois de rirem da piada, recordei-lhes que mais de 80% dos brasileiros vivem em cidades e repartem com a professora de biologia simpatia e respeito pela natureza. Assim, a má noticia para o mundo rural era que, na opinião do povo urbano, os fazendeiros eram os principais responsáveis pela destruição da natureza. E essa noticia certamente trazia consequências adversas para os interesses de todos os que tiram seu sustento ou ganham com a produção da terra. Terminei com um apelo: não deveríamos antes dialogar, encontrar caminhos de colaboração inteligente e sinergia entre a cidade e o campo? Todos concordaram.
Em 2011, no auge das discussões em torno da polêmica alteração do código florestal pelo congresso, a comunidade cientifica propôs um dialogo para aperfeiçoar uma nova lei florestal que fosse balanceada, justa e respeitosa, no interesse do bem comum e iluminada pelo conhecimento. Como exemplo de que o diálogo suportado pelo conhecimento era possível e vantajoso, o próprio grupo de trabalho de especialistas montado conjuntamente pelas duas mais importantes organizações de ciência no País – a Sociedade Brasileiras para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) – continha representantes das contrastantes visões sobre o tema, com mais da metade do grupo vindo da EMBRAPA. No estudo exaustivo de centenas de trabalhos da literatura científica que trata do tema, o grupo constatou que agricultura e proteção ambiental tinham rico potencial de se complementar no uso e preservação inteligente da paisagem e que, portanto, não havia motivo para conflito.
Coerentes com o diálogo que haviam proposto e com os achados dos especialistas, a SBPC e ABC, ao apresentarem publicamente seu estudo, pediram um período de dois anos para uma melhor elaboração da nova lei, de tal forma que o saber cientifico pudesse ser diligentemente absorvido na atividade legislativa. Ao invés disso, e usando de subterfúgios e chantagens, o Congresso apresentou à Nação uma lei que desprezava a ciência e afrontava a vontade majoritária da população, manifesta em pesquisas de opinião.
Pressionada pela indignação popular, a Presidente impôs alguns vetos que atenderam minimamente às recomendações científicas, removendo o que de pior havia sido colocado no simulacro de lei produzido pelo Congresso. Não obstante, olhado em conjunto, mesmo com os vetos presidenciais, a nova lei florestal não melhorou os principais pontos de reinvindicação alardeados para a alteração do código de 1965, como a segurança jurídica por exemplo. E piorou muito os demais pontos, para a agricultura e para a conservação e valorização ambiental, tanto que vários estudiosos tem igualado seu efeito àquele da desregulamentação despudorada dos mercados financeiros que levou à quebra generalizada em 2008, iniciada em Wall Street.
Dois anos após sua publicação – no tempo que a ciência havia solicitado para turbinar uma lei que teria saído eficaz, séria e responsável – a nova lei Frankenstein das florestas tem o setor imobilizado, pois as dificuldades de aplicação somente aumentaram em relação à lei anterior.
Se o diálogo construtivo na busca de harmonia e sinergia em torno do código florestal pode acontecer entre agricultores e ambientalistas, como exemplificam projetos associativos do tipo do Y Ykatu Xingu para recuperação de matas ciliares; ou no âmbito econômico e intelectual, como exemplificam iniciativas empresariais e da comunidade cientifica, porque não pode ocorrer no âmbito maior e mais impactante da atividade legislativa?
Paradoxalmente, nosso Congresso não tem demonstrado compromisso com uma ação em consonância com a vontade dos eleitores. Infelizmente, parece que o problema da construção de leis em dissonância com os interesses da sociedade não é desvio ou privilegio da nossa democracia. Recentemente Paul Krugman relatou afirmação de Thomas Mann e Norman Ornstein em seu livro “It’s even worse than it looks” (“É ainda pior do que parece”) que um dos partidos no sistema norte-americano tornou-se “uma força insurgente e fora de centro — ideologicamente extremista; desdenhosa do regime social e político que nos foi legado; avessa a compromissos; resistente ao entendimento convencional dos fatos, provas e ciência; e desrespeitosa da legitimidade de sua oposição política“.
No caso do Brasil, os representantes políticos no Congresso, responsáveis pela gestação e aprovação da nova lei das florestas, pertencem a vários partidos, mas em seu conjunto seguem lógica similar a esta descrita para o partido extremista norte-americano. Aqui o manto ideológico unificador destes políticos parece ter sido seu interesse privado, ligado à propriedade de grandes extensões de terras.
Uma certeza resta deste processo: para funcionar como deve, o Código Florestal terá que ser reconstruído. Com o conhecimento cientifico e tecnologias disponíveis hoje é possível desenvolver uma lei florestal moderna, compreensível, efetiva, justa, juridicamente incontroversa e inteligente. Uma lei que logre ao mesmo tempo estimular vigorosamente a produção agrícola saudável, enquanto preserva as riquezas da biodiversidade e garante os indispensáveis serviços ambientais dos ecossistemas.
Para tanto basta a sociedade escolher melhor seus representantes na próxima legislatura, colocando claramente sua demanda e depois cobrando um novo Código Florestal iluminado pelo conhecimento. Sempre é tempo para começar de novo.
*Pesquisador sênior do INPA e pesquisador visitante no Centro de Ciência do Sistema Terrestre do INPE, onde coordena o grupo de modelagem de terrenos. Participou no Grupo de Trabalho do código florestal, patrocinado pela SBPC e ABC, tendo relatado o livro produzido.
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