Uma gestação complexa, um parto difícil. Foram anos de discussões, impasses e vaivéns até a aprovação do Novo Código Florestal em 2012. Já nos seus primeiros meses de vida a legislação foi alvo de questionamentos sobre uma possível inconstitucionalidade dos seus dispositivos. E o parecer do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018 não foi capaz de apaziguar os ânimos: as controvérsias prosseguem e a legislação ambiental entra na pré-adolescência sob imbróglios jurídicos.
Para falar sobre as “Controvérsias jurídicas no Código Florestal”, reuniram-se especialistas das áreas do Direito ao Meio Ambiente. O debate foi mediado pela professora Ana Maria Nusdeo, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Instituto Direito por Um Planeta Verde. Conforme ela, as falas demonstraram os meandros e as especificidades das controvérsias que estão chegando ainda hoje, apesar de já ter havido julgamento das ADIs.
A mesa contou com a participação de Sandra Cureau, subprocuradora-geral da República aposentada, Márcia Leuzinger, professora de Direito Ambiental, Cristina Leme Lopes, da Climate Policy Initiative, e Roberto Resende, presidente da Iniciativa Verde.
Os primeiros questionamentos
O ano era 2013 e havia poucos meses que o Novo Código Florestal tinha entrado em vigor quando a então procuradora-geral da República interina, Sandra Cureau, resolveu questionar trechos da legislação no Supremo Tribunal Federal (STF). A advogada, hoje subprocuradora-geral da República aposentada, entrou com três Ações Diretas de Inconstitucionalidade distintas pedindo a suspensão de 58 dos 84 artigos da Lei 12.951, de 2012.
Na avaliação de Sandra, as mudanças introduzidas pela lei eram sinônimo de retrocesso e inconstitucionalidade por reduzirem ou extinguirem áreas consideradas protegidas por legislações anteriores. As ADIs – que foram divididas em eixos temáticos (Reserva Legal, Áreas de Preservação Permanente e anistia concedida a quem tinha desmatado até julho de 2008) – só vieram a ser julgadas em 2017.
“Foi um resultado pífio, com procedência parcial apenas para declarar inconstitucionais dois dispositivos do Código Florestal. A partir daí passamos a ter uma enxurrada de petições junto ao STJ, firmadas por pessoas físicas ou jurídicas”, relatou. E o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça tem sido o de que o Novo Código Florestal não pode retroagir. “Tempus regit actum”, o que, literalmente, na expressão jurídica latina, quer dizer “o tempo rege o ato”.
A importância dos territórios protegidos
Apesar de produzir cerca de 20% da água doce do planeta, de abrigar milhares de espécies de plantas e animais, além de ser território de 180 etnias de povos indígenas, a floresta Amazônica corre o risco de desaparecer. Estima-se que 18% da área já foi derrubada, geralmente para dar lugar a pastagens em fazendas de grande e médio porte. Os dados foram apresentados por Márcia Leuzinger, procuradora do Estado do Paraná em Brasília e professora de Direito Ambiental e de Direito Administrativo no Centro Universitário de Brasília (CEUB). “Se antes o desmatamento normalmente acontecia perto de cidades, estradas e rios, hoje mesmo as áreas remotas vêm sendo degradadas”, pontuou Márcia.
Os efeitos colaterais são inúmeros: perda de biodiversidade,alterações do ciclo hidrológico, da capacidade de manutenção dos serviços ecossistêmicos e aumento da pobreza na região amazônica são alguns dos exemplos. Nesse contexto adverso, tornam-se cada vez mais importantes os espaços territoriais especialmente protegidos (ETEP), resguardados pela Constituição.Criadas e amparadas pelo Código Florestal, as figuras da Reserva Legal (RL) e das Áreas de Preservação Permanente (APP) são exemplos desses espaços territoriais que visam garantir o meio ambiente ecologicamente equilibrado, conforme determina o Artigo 225 da Constituição.
Conforme Márcia, o Novo Código simbolizou um “enorme retrocesso” justamente por flexibilizar o uso e a gestão da RL e das APPs, porém, segue sendo descumprido. “Existem hoje diversos projetos de lei buscando uma flexibilização ainda maior do Código, que foi criado justamente para trazer uma flexibilidade e, com isso, a possibilidade para que setor rural se regularizasse e passasse a implementar a lei. Só que isso se mostrou extremamente complexo, burocrático.”
Nascido sob embates
Antes mesmo do Novo Código Florestal ser aprovado, já havia indícios de que o tema geraria imbróglios. O tempo de tramitação da proposta de reforma da legislação ambiental foi um deles. No fim das contas, o texto aprovado refletiu os conflitos e os acordos alcançados envolvendo um tema complexo, avaliou Cristina Leme Lopes, gerente de Pesquisa no programa de Direito e Governança do Climate Policy Initiative Brasil. “O Novo Código já nasceu repleto de controvérsias”, disse, fazendo referências às Ações Diretas de Inconstitucionalidade.
Segundo ela, o julgamento das ações que questionavam a constitucionalidade da Lei 12.651/2012 em 2018, não pacificou todas as controvérsias existentes, além de que, à medida que Estados implementavam suas leis, novos impasses foram surgindo. “As controvérsias jurídicas mantêm um ambiente de insegurança permanente que vem afetando a implementação da lei em todo o país”, afirmou. Cristina trouxe exemplos de pontos ainda pendentes de decisão, como o conflito do Novo Código Florestal com a Lei da Mata Atlântica e a revisão de termos de compromisso firmados na vigência da lei anterior.
Tais controvérsias, de acordo com ela, impactam fortemente a implementação da lei florestal nos Estados. “O Paraná, por exemplo, tem cerca de 120 mil termos de compromissos para recuperação de Áreas de Preservação Permanente e Reservas Legais pactuados na vigência do Código Florestal de 1965, sendo que 14 mil produtores já pediram ao órgão ambiental a revisão dos termos conforme a lei de 2012”, explicou.
SP mais verde
Presidente da Iniciativa Verde, Roberto Resende apresentou informações sobre o andamento do Programa de Regularização Ambiental (PRA) em São Paulo. Conforme o agrônomo, as estimativas sobre o déficit florestal no Estado – considerando a demanda por restauração de APP e RL – variam entre 500 mil e 1,35 milhões de hectares. Para reivindicar maior transparência e objetividade na implementação do PRA paulista, diversas pessoas e instituições se reuniram em janeiro de 2016 e criaram o coletivo Mais Florestas.
Com um papel indutor para o país, devido ao seu peso político e econômico, São Paulo possui um índice de 22% de cobertura vegetal remanescente, a qual, porém, está mal distribuída. O Estado, na opinião de Resende, destaca-se possuir por uma posição privilegiada no aspecto institucional. “São Paulo tem um acúmulo histórico de instituições e normas ambientais, a pesquisa costuma ser bem aplicada e desenvolvida e o Estado assume compromissos internacionais”, afirmou.
No entanto, na prática, os mecanismos não estão sendo aplicados. Resende teceu críticas ao Programa Agrolegal, criado em 2020, com o objetivo de promover a regularização da Reserva Legal dos imóveis rurais no Estado de São Paulo. “A regularização ambiental é tratada de maneira mais formal do que contratual, induz à revisão de termos firmados, simplifica mecanismos de monitoramento e desconsidera acúmulo técnico”, disse, chamando a atenção ainda para o atendimento precário aos povos e comunidades tradicionais.
O desafio de fazer cumprir
Fazer com que o Novo Código Florestal – o Código possível – seja cumprido continuará sendo o grande desafio para a próxima década, na avaliação dos especialistas. Apesar dos retrocessos nas leis ambientais nos últimos anos e dos embates que geram insegurança jurídica, as controvérsias podem representar uma brecha para melhorar as legislações, conforme a professora Márcia Leuzinger. No entanto, é preciso estar atento. Sandra Cureau, subprocuradora-geral da República aposentada, alertou para os riscos de municípios e Estados flexibilizarem as regras ambientais, invadindo uma competência da União.
Para tirar, de fato, a lei do papel, resolver imbróglios é fundamental. Cristina Leme Lopes, da Climate Policy Initiative, lembrou citou como exemplo de impasses que merecem atenção e agilidade dos Estados e da Justiça temas como compensação da Reserva Legal, a aplicação da Lei da Mata Atlântica e a revisão dos termos de compromisso.
Por outro lado, Roberto Resende, presidente da Iniciativa Verde, ponderou que, muitas vezes, o problema não é nem a previsão legal, mas, sim, cumprir o que já existe. Ele se referia aos Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA), previstos em São Paulo desde 2010 e que, no entanto, ainda não passaram da fase de projeto piloto.
Assista ao debate na íntegra:
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