O direito à terra é a principal luta dos povos tradicionais. Quilombolas, indígenas, pescadores artesanais têm intensificado as batalhas, nos últimos anos, para impedir retrocessos e garantir a própria sobrevivência em territórios constantemente ameaçados e em disputa. Não bastassem tais conflitos agrários e os impactos da crise climática, o racismo estrutural age como uma sombra sobre estes povos, conforme Chagas Sousa, assessor da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), que mediou a mesa de debate “Código Florestal, Territórios coletivos e comunidades tradicionais”.
Ele destacou a importância da discussão sobre a implementação do Código Florestal para que tais populações não sejam excluídas.
Atualmente, estima-se que haja 6.300 comunidades quilombolas no país, o que representaria de 10 a 15 milhões de pessoas, mas há problemas no processo de cadastramento destas populações, lembra Sousa. “Junto com o processo de desmatamento no Brasil, fca evidente que a violação dos direitos dos povos tradicionais, dos povos quilombolas, que protegem e dependem da biodiversidade, vem a ameaça à segurança dessas populações”, frisou.
Participaram da mesa Rodolpho Bastos, secretário adjunto de Gestão e Regularidade Ambiental da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, Raimundo Magno do Nascimento, consultor de projetos da Coordenação Estadual Quilombola do Pará – Malungu,
Luciene Figueiredo, secretária-adjunta de Povos e Comunidades Tradicionais (SAPCT) na Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e
Participação Popular do governo do Maranhão, e Jarlene Gomes, pesquisadora no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
O exemplo do Pará
Criado em 2020, o programa Regulariza Pará tem dado celeridade à análise dos Cadastros Ambientais Rurais (CAR). Em fevereiro de 2022, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) registrou o recorde de 6.603 processos analisados, contabilizando
um total de aproximadamente 90 mil. Os números foram apresentados por Rodolpho Bastos, secretário-adjunto de Gestão e Regularidade Ambiental da Semas. Ele lembrou que, até 2018, a secretaria realizava em média 125 análises por mês, devido a demandas por licenciamento.
Falando sobre a experiência da implementação do CAR em territórios coletivos, Bastos destacou que o programa – que teve início em projetos de assentamentos agroextrativistas – caracteriza-se por uma análise ativa, mas que a demanda deve partir das comunidades. Nestes locais, já foram entregues 11 CARs, beneficiando 1770 famílias que vivem em uma área de 396 mil hectares. Ainda conforme o secretário, a municipalização da análise do CAR, além da análise e validação em modelo simplificado para imóveis rurais de até quatro módulos fiscais,
têm contribuído para a eficácia do Regulariza Pará.
Como o CAR é autodeclaratório e exigência para políticas de crédito, as sobreposições, contudo, seguem como desafio. Mas se antes os cancelamentos dos CAR eram feitos sempre que havia sobreposição, agora ocorrem quando esta passa de 50%. “Não é a Semas que elabora o CAR, é a própria comunidade a partir de um processo participativo que culmina na capacitação de quilombolas, que são escolhidos pela comunidade. (…) Nosso processo é participativo, integrador, busca ir a campo mais de uma vez. É um processo que passa por reunião de lideranças, assembleias, capacitações, e isso demanda um tempo.”
“Vamos continuar lutando”
Apesar de ser o estado que mais reconhece comunidades quilombolas, o Pará ainda tem um longo caminho a percorrer para garantir os direitos desta população. A constatação é de Raimundo Magno do Nascimento, consultor de projetos da Coordenação Estadual Quilombola do Pará – Malungu. Um dos principais entraves é a duplicidade de registro, um fenômeno que, no entanto, ocorre em todo o país: calcula-se
que 379 áreas quilombolas apresentam sobreposição com 9.439 registros do Cadastro Ambiental Rural (CAR), o que corresponde a 62,2% do território quilombola. “Não me lembro de ver cadastro que não tenha sobreposição de terceiros”, afrmou.
A luta das comunidades quilombolas é intensa, conforme Magno. “A gente percebe que, para as comunidades, o número de cadastros efetivados é mínimo. O Pará conta, segundo o IBGE, de 2019 para 2020, com 528 comunidades censitárias com presença de quilombolas.
O número de CAR elaborado – e com problemas – é mínimo”, disse. Segundo ele, a falta de informações e a corrida para não perder o prazo de inscrição no CAR e, consequentemente, o acesso ao crédito agrícola geraram uma “série de transtornos”.
Por isso, no seu entendimento, a implementação do Novo Código Florestal é um “desafo imenso”, especialmente quando se trata de políticas para as comunidades quilombolas. “Mesmo reconhecendo os esforços deste ou daquele governo, deste ou daquele órgão, ainda temos que avançar. Infelizmente, não temos muito o que comemorar nestes 10 anos”, lamentou. Os empecilhos, porém, não minam a resiliência:
“É preciso dizer que o que foi feito no estado foi graças à luta incansável do movimento quilombola. Vamos continuar lutando.”
No Maranhão, avanços e muito trabalho por fazer
Do Norte ao Nordeste, sopram ventos favoráveis à implementação do Novo Código Florestal Brasileiro, apesar dos atrasos e das turbulências. Luciene Figueiredo, secretária-adjunta de Povos e Comunidades Tradicionais (SAPCT) na Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular, trouxe para o debate a experiência do governo do Maranhão. Em quatro anos, as inscrições no Cadastro Ambiental
Rural (CAR) de povos e comunidades tradicionais aumentaram em mais de seis vezes, passando de 88 em 2018 para 541 em 2022. Deste total, 455 cadastros são de territórios quilombolas.
No Maranhão, as estimativas apontam a existência de entre 800 e mil comunidades quilombolas: “Ainda está aquém da realidade. Portanto, ainda há muito trabalho por fazer”, admite Luciene, constatando ainda que “as famílias tradicionais estão vivendo em áreas cada vez menores do que tempos atrás, quando não havia pressão pela terra”.
Conforme a secretária-adjunta, com exceção dos indígenas, cerca de 90% das áreas dos povos e comunidades tradicionais não estão regularizadas.
Ela explicou que, por designação do governo do Estado, quem faz o CAR da agricultura familiar e dos povos e comunidades tradicionais é a Secretaria de Estado da Agricultura Familiar. A pasta coordena o projeto Mais Sustentabilidade no Campo, apoiado pelo BNDES, cuja meta é o cadastramento de todos os imóveis rurais com até quatro módulos fiscais localizados nos 217 municípios do Maranhão. Com o passar do tempo e as lições do trabalho de campo, decidiram avançar para a análise e validação, o que foi possível graças a uma instrução normativa, fruto de oito meses de trabalho e discussões.
Populações ainda mais vulneráveis
Os assentamentos da reforma agrária representam mais de 16,5 mil inscrições no CAR, o que corresponde a 54,9 milhões de hectares. Já os territórios de povos e comunidades tradicionais respondem por cerca de 3,2 mil cadastros, equivalentes a 39,4 milhões de hectares. Segundo a geógrafa Jarlene Gomes, pesquisadora no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), é de extrema importância que se avance
na implementação do Código Florestal nestas áreas, pois se trata de territórios ameaçados e vulneráveis, que acabam por ser muito mais impactados pela crise climática. “Eles já estão sofrendo perda de biodiversidade, risco de incêndios florestais, perda de recursos hídricos, perdas econômicas e conflitos socioambientais”, disse.
Por outro lado, tirar a legislação ambiental do papel traz uma série de oportunidades. Alcance das metas climáticas, manutenção do clima regional e local, incentivos econômicos e acesso às políticas públicas, nova economia e reconhecimento dos direitos coletivos foram exemplos citados por Jarlene. Outro dado que a pesquisadora trouxe diz respeito ao desmatamento nos assentamentos, que contribuem (especialmente os convencionais) com uma média de 20% para o desmatamento na Amazônia Legal. “Há desafios, mas também oportunidades porque esses territórios também conservam a floresta, a biodiversidade, retém carbono”, disse.
Antes, há que superar uma série de empecilhos, os quais passam por vazios de inscrição em relação a área cadastrável, cadastro simplificado da CAR, carência de recursos humanos nos órgãos estaduais, ausência de bases cartográficas de referência, tratamento de sobreposições e normativas para o processo de análise e validação. Além disso, conforme a pesquisadora, é preciso que haja regulamentações estaduais,
incentivos econômicos e engajamento da sociedade, além de Programas de Regularização Ambiental específicos para os povos e comunidades tradicionais, considerando os seus modos de vida e viabilizando o exercício pleno de seus direitos.
Um longo caminho a percorrer
Exemplos de vontade política, de boas práticas existem. No entanto, diante de tantas dificuldades, ainda há um longo caminho a percorrer. Não é um trabalho para ser concluído em pouco tempo, de forma individual. E ouvir e considerar as demandas dos povos e comunidades tradicionais é fundamental. Jarlene Gomes, pesquisadora no IPAM, destacou a necessidade de que tais populações sejam assistidas de forma mais efetiva. “É interessante a gente olhar o que está dando certo, quais são esses desafios e como a gente vai avançar, uma vez que em 10 anos não temos muito avanços. Porém, já temos algumas iniciativas que precisam de escala”, disse. Já Carlos Chagas reiterou: “As populações quilombolas e tradicionais que estão nos seus territórios são detentoras de direitos. Se a implementação do Código não se debruçar sobre o que diz o STF, a Constituição, vai nos restar a barbárie do racismo, a barbárie de deixar essas populações sem a devida inclusão.”
Painelistas
Chagas Sousa – Assessor / CONAQ (Moderador)
Rodolpho Bastos – Secretário Adjunto de Gestão de Sustentabilidade / Semas-PA
Magno Nascimento – Consultor de Projetos / Malungo
Luciane Figueiredo – Secretária Adjunta de PCTs / SEDIHPOP
Jarlene Gomes – Pesquisadora / IPAM
Assista ao debate na íntegra:
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