Comemorar, do latim commemorare, significa lembrar, trazer à mente. Foi ao pé da letra que se deram as celebrações da primeira década da Lei 12.651/2012, que criou o Novo Código Florestal brasileiro. Isso porque, entre os convidados, predominou o sentimento de que não havia muito a “festejar”. Pelo contrário: ainda há um longo caminho a percorrer para tornar a legislação real e efetiva, para que ela, de fato, possa viabilizar a regularização ambiental e a proteção da vegetação nativa.
Em um evento que reuniu diversos atores sociais e políticos relevantes, mediado pela jornalista Marta Salomon, foram debatidos os avanços na implementação da lei. “O Código Florestal não era a legislação do sonho dos ambientalistas. Havia a expectativa de que ele promovesse a regularização ambiental de 21 milhões de hectares, mas, 10 anos depois, a conclusão é a de que não se sabe qual é o tamanho desse passivo florestal”, destacou Marta.
Gargalos e ameaças
Secretária-executiva do Observatório do Código Florestal, Roberta Del Giudice afirmou que, ao longo dos anos, foi possível perceber que a Lei 12.651/2012 é a melhor ferramenta que a sociedade tem em mãos para transformar a commodity agrícola brasileira numa commodity sustentável. A implementação do código, segundo ela, é fundamental para a melhorar a imagem do Brasil no exterior, mas, antes, é preciso superar gargalos em campo e ameaças no Congresso Nacional. “Nesses 10 anos, a gente perdeu 13,5 milhões de hectares de vegetação nativa e teve um aumento do PIB agropecuário em 34%, e esses não são os melhores indicadores para avaliar se a gente está crescendo, pois, nesse mesmo período, a gente teve o aumento da fome, da pobreza, da exclusão social”, avaliou Roberta.
Já o vice-presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), Alexandre Gaio, falou sobre a importância e o histórico de atuação do órgão. “É incumbência do Ministério Público cobrar, reclamar, exigir, responsabilizar eventualmente. O MP no Brasil é responsável por mais de 90% dos casos judiciais envolvendo o meio ambiente”, disse, chamando a atenção para milhares de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) sobre Área de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL). “Para o MP, a efetividade da Lei 12.651 é fundamental, faz parte do nosso dia a dia. Temos uma relação umbilical com o cumprimento dessa lei e vemos com muita preocupação as tentativas de desvirtuar sua interpretação e de ampliar retrocessos que já aconteceram em 2012.”
Sobre as ameaças ao Código Florestal no Congresso, o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), que participou do evento por vídeo, disse que já na aprovação do Código, em 2012, se percebeu uma reorganização das forças políticas – capitaneada por uma parcela do agronegócio e desfavorável às questões ambientais – que foi piorando desde então. “Apesar dos fenômenos climáticos extremos, que se tornam cada vez mais frequentes, inclusive no nosso país, causando muitos estragos materiais e até mesmo a perda de muitas vidas, o Congresso Nacional tem agido de forma inconsequente em relação à agenda ambiental”, afirmou, destacando que será preciso “desfazer o que foi feito de errado nos últimos anos e reconstruir tudo aquilo que foi destruído”.
Assentamentos e florestas públicas
Apesar de todos os esforços para enfraquecer e alterar o Código Florestal, a Lei 12.651/2012 é um marco regulatório robusto e deve, sim, ser concretizado. Esta é a opinião de Gabriela Savian, diretora de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). “Esse marco já traz segurança ambiental para a produção sustentável do Brasil e para a conservação da vegetação nativa. O que a gente precisa, de fato, é implementá-lo: há um amplo cadastro de imóveis, legislação para o Pagamento por Serviços Ambientais, mas existem vários desafios pela frente”, disse.
Gabriela falou sobre a regularização ambiental dos assentamentos da reforma agrária e o desmatamento em florestas públicas. Entre 2019 e 2021, o desmatamento anual no bioma Amazônia foi 56,6% maior do que o registrado entre 2016 e 2018, sendo que uma porcentagem significativa ocorreu nestes locais. Ela defendeu a necessidade de se pensar políticas públicas específicas para os cerca de 8,2 mil assentamentos que existem no país (39% na Amazônia), com um passivo de Reserva Legal estimado em 1 milhão de hectares. Já as terras públicas, especialmente as florestas não destinadas, concentram 51% do desmatamento no último triênio, sendo 83% dessas de domínio federal.
Fortalecer a transparência
Uma transparência opaca, como um vidro embaçado. Assim pode ser descrito o nível de acesso à informação nos órgãos ambientais estaduais, conforme um estudo sobre a implementação do Código Florestal produzido pelo Observatório do Código Florestal (OCF), Instituto Centro de Vida (ICV), Imaflora, ARTIGO 19 e Instituto Socioambiental (ISA). Os dados foram apresentados por Ana Valdiones, coordenadora de Transparência no ICV. “A transparência passiva dos estados se mostrou limitada para garantir à sociedade o acesso a informações em relação à regularização ambiental. Para mudar o cenário, são necessárias ações para o fortalecimento de práticas de acesso à informação junto aos estados”, disse.
Entre 2019 e 2021, foram efetuados 278 pedidos para os órgãos estaduais de meio ambiente e do Distrito Federal, sendo que 28% foram ignorados ou respondidos fora do prazo, violando a Lei de Acesso à Informação (LAI). Além disso, para mais de 40% das informações solicitadas, as respostas não foram consideradas satisfatórias. Alguns estados deixaram muito a desejar: o Acre, por exemplo, não respondeu a nenhum dos cerca de 10 pedidos encaminhados. Por outro lado, houveram exemplos positivos: o Mato Grosso atingiu um percentual de 90% de respostas satisfatórias.
CAR 2.0
Para avançar na implementação do Novo Código Florestal, uma mudança de paradigma se faz necessária, segundo o professor Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele defendeu a importância de uma automatização completa da análise dos Cadastros Ambientais Rurais (CARs) com a priorização de análises manuais, além da criação de incentivos e desincentivos. Se a inscrição no CAR teve um resultado positivo, o mesmo não se pode dizer da validação: atualmente, cerca de 6 milhões de registros (92% do total) estão aguardando a análise, que esbarra em uma série de empecilhos, das sobreposições à falta de mão de obra nos órgãos estaduais.
Na proposta do CAR 2.0, imóveis sem pendências e sobreposições iriam direto para um canal verde, com validação automática. E os demais passariam pela análise manual obedecendo a três critérios paralelos de prioridade: ambiental, social e econômico. Ou seja, áreas com maior passivo e territórios sensíveis, com conflitos, passariam na frente. “Nosso recurso é escasso, nosso tempo é escasso, a bomba climática está aí. Não temos como ficar delongando mais”, afirmou Rajão.
Em estados como Minas Gerais, o potencial de validação automática seria de 65%, já no Pará, de 20% dos imóveis. A conclusão, conforme o professor, é que a implementação do Código foi iniciada de forma efetiva em poucos estados. “Mesmo em estados com muito esforço, como Pará, Mato Grosso, São Paulo e Rio Grande do Sul, foram concluídas poucas validações, o que nos coloca a importância de pensar em outras soluções junto com incentivos para mover todo o setor produtivo na direção da implementação do Código Florestal.”
Superar antagonismos
Brasil: uma potência ambiental ou agrícola? Ou ambas? Para Maurício Moura Costa, presidente da BVRio, esta é uma falsa dicotomia, promovida por uma “guerra de narrativas muito deletéria que tem acontecido no país e que tem sido agravada nos últimos tempos”. Tal clivagem, segundo ele, é negativa para o país. “A gente não pode funcionar mais na base desse antagonismo. É preciso separar o joio do trigo, não é um lado e outro, sustentabil e agropecuária. Existe o certo e o errado: agropecuária e – como costumo dizer – a ‘ogropecuária’ que tem que ser combatida”, afirmou.
No encerramento do evento “Avanços na implementação do Código Florestal”, o presidente da BVRio apresentou o PlanaFlor, um plano nacional de desenvolvimento sustentável que promove os ativos ambientais, econômicos e sociais a partir da efetiva implementação da Lei 12.651/2012. “O Código Florestal é uma legislação extremamente poderosa, abrangente, com grande impacto em várias dimensões. Porém, 10 anos se passaram sem que tivéssemos um plano para a sua implementação”, disse.
A proposta de plano plurianual, até 2030, foi entregue aos candidatos ao governo dos Estados e à Presidência da República. Iniciado em 2021, o projeto já contou com diagnóstico, oficinas, workshops e consultas a públicos específicos, com o objetivo de fomentar a produção rural integrada à proteção e recuperação da cobertura vegetal.
Martha Salomon – Jornalista, especializada em políticas públicas e doutora em desenvolvimento sustentável na UNB. (Moderação)
Roberta del Giudice – Secretária Executiva do Observatório do Código Florestal
Alexandre Gaio – Promotor de Justiça no Estado do Paraná e vice-presidente da ABRAMPA
Gabriela Savian – Diretora Adjunta Políticas Públicas na IPAM
Raoni Rajao – Professor associado de Gestão Ambiental no departamento de Engenharia de Produção da UFMG e membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências.
Mauricio Costa – Presidente executivo e co-fundador do grupo BVRio.
Alessandro Molon – Deputado Federal
Ana Paula Valdiones – Coordenadora do Programa de Transparência Ambiental do ICV.
Roberto Smeraldi – Fundador da Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, jornalista e chef de cozinha
Assista ao debate na íntegra:
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