A canção “Herdeiro da Pampa Pobre”, que fez sucesso com a banda gaúcha Engenheiros do Hawaii, fala sobre a difícil missão de cultivar raízes em “campos desertos que não geram pão, onde a ganância anda de rédeas soltas”. “Se for preciso, eu volto a ser caudilho por essa pampa que ficou pra trás, porque eu não quero deixar pro meu filho a pampa pobre que herdei de meu pai”, diz trecho deste clássico contemporâneo que nos anos 1990 já alertava para os problemas ambientais provocados pelas monoculturas de grãos nas pradarias mistas que ocupam cerca de 70% do território do Rio Grande do Sul.
Bioma que ocorre em um único Estado, o Pampa acaba, por esta razão, sendo um ilustre desconhecido a nível de país, afirmou Rodrigo Dutra, da Associação dos Servidores do Ibama (ASIBAMA-RS), que mediou
o painel “Aplicação da lei de proteção da vegetação nativa no Bioma PAMPA”. Conforme ele, a gravidade
da situação e a falta de políticas públicas levou cerca de 20 organizações a se reunirem numa coalizão para discutir diretrizes e ações em prol do uso sustentável e a proteção do bioma. Também participaram do painel Heinrich Hasenack, do MapBiomas, Carlos Nabinger, professor da UFRGS, Annelise Steigleder, promotora de Justiça no Ministério Público do Rio Grande do Sul, e Alexandre Krob,diretor técnico do Instituto Curicaca.
Um bioma ameaçado
Em quase três décadas, o Pampa foi o bioma brasileiro que, em termos percentuais, mais perdeu vegetação nativa: foram devastados 21,4% deste território, menos 2,5 milhões de ha de 1985 a 2020. No ranking de destruição no período, seguem, na sequência, o Cerrado, com uma perda de 19,8% de sua vegetação nativa, Pantanal (-19,8%) e Amazônia (-11,6%). Os dados foram apresentados por Heinrich
Hasenack, coordenador da equipe responsável pelo mapeamento do Pampa brasileiro, no MapBiomas. Professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ele abordou as fisionomias do bioma na América do Sul e no Brasil e as mudanças ocorridas na última década. Apesar de ocupar cerca de 70% do Rio Grande do Sul, o bioma Pampa corresponde a apenas
2,3% do território brasileiro. No total, o bioma possui uma extensão de 750 mil km quadrados, que se estendem por Brasil, Uruguai e Argentina.
As estimativas apontam que, em solo gaúcho, 44,1% da vegetação já foi suprimida para uso antrópico. “Há uma progressiva perda de vegetação campestre, que se acentua a partir de 2010 e ocorreu em prol do avanço da agricultura e silvicultura”, disse Hasenack, destacando que o bioma não é homogêneo. “Cada um desses campos tem suas peculiaridades. Precisamos fazer as pessoas enxergarem isso, e perceberem que não adianta preservar apenas uma porção desse total, de um tipo de fisionomia campestre. Assim como não adianta preservar só a floresta amazônica, se a gente não preservar um
pouco de cada um dos demais biomas brasileiros”, comparou.
Pecuária nas origens do gaúcho
Para o professor da Faculdade de Agronomia da UFRGS, Carlos Nabinger, a pecuária e o campo têm que estar associados. Ele destacou que a vegetação campestre é a cobertura vegetal original de todo o Cone Sul, ou seja, trata-se de um ecossistema que já existia quando, há 12 mil anos, chegaram os primeiros grupos humanos. Por esta razão, conforme ele, o Pampa tornou-se desde o início da colonização européia a base lógica da economia regional, através da pecuária. “A pecuária foi quem fez o Rio Grande, e a pecuária fez também a nossa cultura. Não existiria gaúcho sem o campo. Então, tenho certeza que, com o desaparecimento do campo, nossa cultura também irá desaparecer”, disse.
Com 11 grandes grupos de solo, cerca de 3 mil espécies de plantas e 480 espécies de aves, entre outros, o bioma possui uma fauna e fora riquíssima e particular, lembrou o professor. “A transformação de toda essa riqueza biológica em monocultivo evidentemente vai trazer prejuízos ambientais muito sérios”, disse. Por fim, Nabinger frisou que há a possibilidade de aumento de renda sem necessidade de substituir o bioma. Um exemplo seriam as tecnologias de processos, que não implicam na aplicação de insumos. O
professor citou um caso de aumento da produtividade, de 70 quilos de peso vivo por hectare ao ano para 230, nos sistemas de recria e terminação, com ajustes nos processos de ingestão de nutrientes e crescimento do pasto, etc. “Esses campos precisam continuar existindo porque o serviço ambiental vale muito mais que o produto animal, o problema é que eles não são cobrados. Disso depende a qualidade de vida de regional sem prejuízo ao fator econômica. Pelo contrário, a gente pode ganhar mais preservando.”
Barreiras ao Código
Se no Pampa praticamente não há floresta, para que serve um Código Florestal? Este é um dos questionamentos que podem indicar o desconhecimento e o baixo envolvimento social com a lei de proteção da vegetação nativa. Coordenador técnico do Instituto Curicaca, Alexandre Krob apontou, além disso, outras quatro principais dificuldades para a efetiva implementação da legislação. A lista também inclui uma grande resistência do setor produtivo, omissão e conivência do Estado, impasse e morosidade
nas questões judiciais e inexistência de mecanismos políticos e econômicos de pressão ou de incentivo.
Krob falou sobre a trajetória da ONG que, desde 1997, atua técnica e politicamente pela conservação da biodiversidade, o ecodesenvolvimento e a salvaguarda cultural, bem como trouxe exemplos de ações de conservação no Pampa. De acordo com ele, é preciso ter em mente que o bioma é composto por um mosaico de ecossistemas, o que exige manejos específicos, como no caso das áreas com butiazais centenários. “É preciso a gente realmente ter um apoio muito grande, multi-institucional, e a coalizão pelo Pampa vem aí nesse sentido, para tentar desatar alguns nós que estão causando essa significativa perda de ambientes naturais”, refletiu.
(Des)proteção jurídica do Pampa
Promotora de Justiça no Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), Annelise Steigleder abordou a (des)proteção jurídica do bioma Pampa. Em julho de 2015, a Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente da Capital ingressou com uma ação civil pública contra o Estado com o objetivo de assegurar a manutenção de Reserva Legal (RL) nas áreas do bioma em que existe atividade de pecuária. Isso porque, conforme explicou Annelise, o decreto estadual 52.431/2015 permite que os campos nativos usados na
atividade pastoril sejam declarados, no Cadastro Ambiental Rural (CAR), como “área rural consolidada por supressão de vegetação nativa com atividades pastoris”. Na prática, segundo ela, o “jogo de palavras” significa “driblar” a exigência RL para os imóveis rurais de até quatro módulos fiscais. A ação ainda está pendente de julgamento final.
“Me parece que a principal dificuldade que a gente tem é a falta completa de vontade política, ou melhor dizendo, a vontade política capturada pelo interesse do setor produtivo, que não consegue pensar ou concordar com qualquer tipo de mitigação do direito de propriedade”, disse. A promotora também lamentou a falta de instrumentos econômicos, para incentivar quem preserva, além da ausência de
um ordenamento do solo que possa proteger as áreas prioritárias. “Então, tudo isso, tem colocado realmente numa ameaça muito séria o nosso bioma Pampa.
Vontade política para valer
Após as considerações finais dos debatedores, foi a vez da secretária-executiva do Observatório do Código Florestal (OCF), Roberta Del Giudice, subir ao palco virtual para marcar o encerramento do evento. Foram dez dias de programação, 17 painéis e mais de 80 palestrantes. Roberta reconheceu a dificuldade de implementação da lei de proteção de vegetação nativa, apesar da sua importância e de todo o conhecimento gerado. Democratizar as informações e valorizar os cientistas foram algumas das ações apontadas por ela como prioritárias para a agenda ambiental.
“Hoje, você vê que a possibilidade de gerar emprego, de gerar renda com a implantação do Código Florestal, é anunciada por todos os cientistas, pesquisadores da área, por quem faz restauração. E a gente precisa sair dessa inércia. A gente está num modelo arcaico de produção e ocupação do uso do solo que precisa ser alterado, precisa ter vontade política para essa alteração”, disse ela, encerrando o evento Código Florestal +10.
Painelistas
Rodrigo Dutra da Silva – Analista Ambiental / Ibama (Moderador)
Heinrich Hasenack – Coordenador do grupo do Bioma Pampa / MapBiomas
Alexandre Krob – coordenador técnico e de políticas públicas / Instituto Curicaca
Carlos Nabinger – engenheiro Agrônomo, MSc em Fitotecnia, Dr. em Zootecnia e professor / UFGRS
Annelise Steigleder – Promotora de Justiça / MPRS
Link para o debate na íntegra:
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