Análise da entrevista concedida pela ministra: Quem está liderando a implementação do Código Florestal?
Texto de opinião escrito por: Roberta del Giudice e Simone Milach, com colaboração de Gerd Sparovek, Pedro Moura Costa e Raoni Rajão
A ministra Tereza Cristina, em entrevista à Folha na segunda-feira (17), afirmou que o Código Florestal deve ser implementado na Amazônia para ajudar a reduzir o desmatamento florestal. O Observatório do Código Florestal (OCF), rede de 31 organizações que há 7 anos acompanha a implementação da Lei, concorda e vai além. Mais do que combater o desmatamento, a implementação da Lei pode resultar em uma melhoria significativa da governança relacionada ao uso do solo e em substanciais contribuições para a conservação da biodiversidade e para o armazenamento de carbono em uma escala regional. Se integralmente implementada, a Lei Florestal tem o potencial de conservar mais de 150 milhões de hectares de vegetação nativa no Brasil, sequestrando cerca de 100 GtCO2 e colocando o setor produtivo agropecuário brasileiro na vanguarda da sustentabilidade mundial.
É preciso cautela — Existe um longo caminho de ações que ainda devem ser conduzidas pelo próprio Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), visto que desde janeiro de 2019, a responsabilidade pela implantação do Código Florestal pelo governo federal foi transferida da pasta ambiental para o MAPA. O Ministério precisa conduzir ações políticas e impulsionar o essencial debate para a definição de temas como a identidade ecológica, o marco temporal da Reserva Legal, precisa impulsionar o cadastramento de pequenos proprietários e povos e comunidades tradicionais, precisa promover o mercado de Cotas de Reserva Ambiental (CRAs) e regulamentar os incentivos econômicos à implantação da lei.
A análise dos dados do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SiCAR), um dos principais instrumentos do Código Florestal, cabe aos estados. Um módulo eletrônico de análise automatizada já vem sendo anunciado pelo Serviço Florestal Brasileiro, desde 2014. Esse anúncio levou vários estados à inércia na expectativa de um módulo único federal. Este ano, 2020, tal módulo foi apresentado aos estados. Contudo, sua implantação está apenas na fase de projetos pilotos e nenhum estado ainda dispõe dessa ferramenta automatizada para essa fase da implantação do Código Florestal.
Dificuldades de implementar a Lei — Quando se dá luz a essas ações necessárias, é possível perceber que o problema da implementação da lei não está apenas relacionado aos questionamentos jurídicos, como expôs a Ministra. A constitucionalidade de diversos pontos do Código Florestal foi de fato submetida ao STF, uma vez que realmente contrariavam a Constituição. Mas o julgamento das ações se deu em fevereiro de 2018, restando a ser julgado embargos de declaração interpostos pela própria Advocacia Geral da União e pelo Partido Progressista. Já alguns questionamentos pontuais a respeito de normas estaduais derivam sempre da tentativa de se estressar a interpretação legal em prol da redução da proteção às florestas.
Desmatamento e alterações da legislação — A redução do desmatamento deve perpassar por um posicionamento forte de intolerância. A ineficiência das ações do governo federal frente aos crescentes dados de desmatamento estimula o crime e nos impede de avançar. O simples fato de não ter nenhuma alteração na Lei por esse governo (o que não é verdade), como também manifestou a Ministra ao responder que não existe um estímulo ao desmatamento, não é o suficiente para combater esse crime. Mesmo que fosse, o Código Florestal foi sim alterado e postergado pela Lei nº 13.887, de 31 de dezembro de 2019, que converteu em lei a Medida Provisória (MP) 884, de 2019, um resultado considerado “dos males o menor”, pois o texto do projeto empenhava-se em aprovar a regularização automática do imóvel. Além da MP citada, outras tentativas de flexibilização da lei foram feitas: o atual governo ainda tentou aprovar o projeto que beneficiaria apenas 4% de médias e grandes propriedades que não cumpriam a lei. Ao todo, foram 29 projetos de lei com potencial de promover o desmatamento, propostos no Congresso Nacional apenas em 2019, com destaque para os Projetos de Lei 2362/2019, que extinguiria as Reservas Legais (de autoria dos Senadores Flávio Bolsonaro e Márcio Bittar) e 3511/2019, que altera o CAR e o PRA.
A questão da regularização fundiária — Outra alteração proposta é a da norma que trata da regularização fundiária. A regularização fundiária é necessária para garantir o direito à terra a comunidades locais que ocupam a região a muito tempo. Contudo, a apropriação de bens públicos tem sido uns dos principais fatores que impulsionam o desmatamento na Amazônia, inclusive com expulsão das comunidades locais, que originalmente os ocupavam. A diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Dependendo da maneira como é feita, pode aumentar a desigualdade social, a violência no campo e estimular ainda mais o desmatamento. Esse é bem o caso da MP 910/2019, que perdeu a validade e foi substituída pelo PL 2.633/20. A proposta visa mudar a Lei de Regularização Fundiária (Lei nº 11.952/2009), apenas dois anos após sua última modificação, e facilita a grilagem de terras.
O MAPA tem afirmado de forma insistente que somente com a regularização fundiária será possível responsabilizar os desmatadores ilegais, defendendo-a como uma medida ambiental relevante. Além de ser um princípio do direito ambiental a responsabilidade objetividade do dano ambiental, recaindo a responsabilidade em quem ocupa o imóvel, o Código Florestal estabelece obrigações não só a proprietários, mas também a possuidores. Assim, os dados do CAR já são suficientes para a aplicação de sanções, mesmo na ausência de um título. Ao mesmo tempo, estudos científicos mostram que áreas tituladas têm maiores níveis de desmatamento do que as áreas públicas sem destinação (ver estudo 1, estudo 2 e estudo 3). Esse resultado vai ao encontro à conclusão da auditoria do TCU sobre o INCRA, o qual aponta diversas irregularidades e a falta de controle do órgão às condicionantes ambientais. Sem o fortalecimento do INCRA e do Ibama, o levantamento e o reconhecimento dos direitos das comunidades locais e a aplicação rigorosa da legislação, o aumento da titulação de áreas públicas só vai agravar uma situação já crítica.
O relacionamento com o mercado Europeu — Existe também uma grave miopia quando o desmatamento não é visto como uma ameaça às relações comerciais com a União Europeia. Um recente estudo publicado na Science, liderado por pesquisadores da UFMG, mostrou que cerca de 20% das exportações provindas do Cerrado e da Amazônia para a União Europeia estão ligadas ao desmatamento ilegal e os pesquisadores alertam para a pressão internacional. Recentemente 40 grandes empresas da Europa enviaram uma carta ao Congresso, ameaçando deixar de comprar produtos brasileiros associados a invasões e ao desmatamento. Esse movimento tem crescido no mundo inteiro.
Políticas de comando e controle — Sobre o que poderia ser feito para avançar com a implementação do Código Florestal, a Ministra acredita que talvez poderiam ser mais céleres na punição daqueles que não mantêm a reserva legal nas suas propriedades. Acreditamos que as políticas de comando e controle são essenciais. Contudo, não se trata apenas de serem mais céleres, mas realmente penalizarem os desmatadores. Segundo estudo do Humans Right Watch, o número de multas por desmatamento ilegal emitidas pelo Ibama, órgão ambiental federal responsável pela autuação de infrações ambientais, “havia caído em 25 por cento de janeiro até setembro de 2019, comparado com o mesmo período do ano anterior, de acordo com o site do Ibama”, sem contar a baixa eficiência da execução das punições aplicadas.
Interação com outras políticas — Também é preciso compreender que o Código sozinho não é a solução. É importante buscar a integração de políticas socioambientais e econômicas em todas as suas dimensões, inclusive no diálogo. Muitas dessas ações necessárias para avançar com a Lei já foram mapeadas. O OCF realizou uma série de levantamentos, discussões e estudos sobre a validação do CAR, módulo de inscrição do CAR em territórios de povos e comunidades tradicionais, publicou uma série de guias para a implantação do Código Florestal, identificando caminhos para implantação, com a atuação conjunta do setor público e privado. Os nove estados da Amazônia Legal participaram das discussões, contribuindo com os diagnósticos e resultados. Contudo, foram feitas inúmeras tentativas de discussão e apresentação dos resultados para o Serviço Florestal Brasileiro, cujos técnicos receberam representantes da rede OCF apenas uma vez e não mais retornaram contatos para conhecer os resultados. Sem diálogo é fácil imaginar que teremos mais uma lei sem implantação.
Liderança na definição da estratégia nacional de implementação — É essencial a construção de um plano nacional, que busque o desenvolvimento social e econômico do meio rural, com diálogo, inclusão de ações de reconhecimento do direito à terra à povos e comunidades tradicionais, criação de terras indígenas, destinação de florestas ao manejo madeireiro ou não madeireiro, empresarial ou comunitário, criação de unidades de conservação, aproveitamento de áreas degradadas na produção agrícola, criação de mercados verdes, green bonds e atração de outros tipos de financiamento e capital internacional. É fundamental um plano que vá muito além das ações de comando e controle, embora essas ainda sejam necessárias. Um plano capaz de transformar o paradigma de desenvolvimento sustentável e de baixo carbono, elaborado e implantado com a participação e o engajamento de diferentes atores, com a integração e complementaridade de ações.
Contudo, para isso precisamos de liderança na definição da estratégia nacional de implementação. A liderança natural de um plano estratégico deste tipo é do próprio ministério de Tereza Cristina. A implementação do Código Florestal não será obra de terceiros, tanto pelos meios como pela responsabilidade, mas pode e deve envolver todos os atores que se relacionam com o tema. Aguardamos ansiosos um convite para contribuir com a construção e implantação desse plano, em parceria com o MAPA, Estados, representantes do agronegócio e com demais representantes da sociedade.
Dados inéditos são do Termômetro do Código Florestal, divulgados nesta quinta-feira, dia 5 Previsto pelo Código Florestal, o nível de […]
Documentário filmado durante expedição promovida pelo Observatório do Código Florestal apresenta panorama de comunidades tradicionais e agricultores familiares no bioma […]
Estudo feito pelo CCCA mostra como o Cadastro Ambiental Rural é alterado para permitir a destruição de milhões de hectares […]
Na programação do Brasil durante a 16ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica – COP16,realizada em Cali, na Colômbia, de 21 de […]